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Fiéis ao mito: a tática de Bolsonaro para manter sua legião de apoiadores

O discurso negacionista do presidente une a base bolsonarista mais radical e serve de combustível para as carreatas contra a quarentena

Por André Siqueira, Edoardo Ghirotto Atualizado em 24 abr 2020, 10h36 - Publicado em 24 abr 2020, 06h00

A Covid-19 não passa de uma gripezinha e é preciso enfrentar o vírus como homens, pois um dia todos vamos ter mesmo de morrer. Por essas e outras tristemente antológicas declarações a respeito da doença, Jair Bolsonaro figura na liderança mundial do negacionismo a respeito dos riscos da Covid-19 (ao lado dos governantes da Bielorrússia, Turcomenistão e Nicarágua), segundo avaliações de veículos de prestígio da imprensa internacional. As palavras do capitão também serviram de combustível para mobilizar carreatas bolsonaristas em várias cidades por aqui contra a política de isolamento social. Nos últimos dias, correram o Brasil cenas em que um casal foi agredido ao passar com camisetas vermelhas em meio a uma manifestação em Porto Alegre. São Paulo registrou um buzinaço em frente ao Instituto do Coração (Incor). Como espécie de cereja desse bolo, o presidente compareceu ao ato do último dia 19, em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, quando discursou na carroceria de uma caminhonete para apoiadores que pediam uma intervenção militar e o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Na ocasião, entre uma tossida e outra, Bolsonaro afirmou que não queria mais negociar com os outros poderes da República, o que provocou nova enxurrada de notas de repúdio de entidades e dos chefes do Legislativo e do Judiciário. Na velha tática diversionista que adotou desde que foi eleito, o presidente logo ensaiou um recuo no dia seguinte, mas conseguiu fazer o Brasil esquecer que o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, fora demitido dias antes, com atuação aprovada por cerca de 70% da população no combate à pandemia.

Mais uma vez Bolsonaro aposta na política do conflito e da divisão para manter sua base fiel de eleitores mobilizada — essa tática de confronto, aliás, foi a responsável por sua ascensão ao poder, quando encarnou com sucesso a figura de maior opositor aos anos de corrupção do PT. Segundo uma pesquisa recente do Datafolha, a aprovação do presidente na gestão da atual crise ficou em 33% e se mantém estável desde o início da pandemia. Acredita-se que esse porcentual seja semelhante ao das pessoas que apoiam as políticas em geral do presidente (cerca de um terço do eleitorado). O chamado “bolsonarismo raiz”, a parcela mais fiel ao presidente, é composto, segundo o Datafolha, de um público de maioria masculina, com elevado nível de escolaridade e renda, concentrado nas regiões Sul e Sudeste. Há ainda nesse grupo uma proporção de evangélicos e empresários acima da média em relação à população brasileira.

Homens de negócios como Meyer Nigri, dono da construtora Tecnisa e responsável pela indicação do novo ministro da Saúde, Nelson Teich, mantêm-se ao lado de Bolsonaro desde o pleito de 2018. Mas são os pequenos e médios empreendedores que estão na linha de frente das principais carreatas realizadas no país. Marco Gaspar, de 50 anos, é vice-presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte. Há mais de duas décadas ele administra uma rede de papelarias que herdou do pai. Desde o início da quarentena, Gaspar fechou uma de suas três lojas, demitiu quatro funcionários e concedeu férias a outros cinco. Ele fica sabendo das carreatas pelos mais de dez grupos de WhatsApp e Facebook de que participa com outros microempresários que apoiam Bolsonaro e foi às ruas em três ocasiões para protestar pela flexibilização do isolamento social. “A recessão também mata”, justifica. No Distrito Federal, um dos integrantes das manifestações foi Cleber Pires, de 60 anos, que emprega 150 funcionários em estabelecimentos comerciais na região. Pires tem um primo, médico, internado há três semanas na UTI com a Covid-19, mas participa das carreatas. “É para dar um grito de alerta aos governantes”, define. Por pertencer ao grupo de risco da doença, ele não sai do carro durante as manifestações.

NA MIRA – Alexandre de Moraes: investigação sobre atos antidemocráticos (Fellipe Sampaio/SCO/STF)

O movimento “bolsonarista raiz” pode ser engordado por um novo grupo, que é formado por pessoas de baixa renda. O Datafolha registrou nas últimas semanas que a aprovação de Bolsonaro cresceu 3% entre os que recebem até dois salários mínimos e 6% entre aqueles com renda de dois a cinco salários mínimos. É nesse estrato que está reunida a imensa maioria de trabalhadores informais que terá acesso ao auxílio emergencial de 600 reais pago pelo governo federal. É o caso de José Roberto Freire, um motorista de aplicativo de 48 anos que mora em Bangu, no Rio, e recebeu a primeira parcela da ajuda na última semana. “Estou utilizando o dinheiro para comer”, diz ele. Freire, que em diversas eleições votou em candidatos petistas, hoje defende com veemência as críticas que Bolsonaro faz às quarentenas dos estados. “O país não aguenta essa paralisia”, afirma.

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Em uma pesquisa on-line conduzida pela consultoria Quest, cerca de 1 000 pessoas espalhadas pelo país foram instadas a responder se estavam preocupadas com o coronavírus. Entre aquelas que se declaravam apoiadoras de Bolsonaro, a taxa de respostas afirmativas foi de 85%. Quando elas foram expostas a falas do presidente que minimizavam a gravidade da doença, a taxa de preocupação caiu para 74%. O inverso ocorreu com os opositores de Bolsonaro, cujo temor subiu de 87% para 95% depois de ser apresentados a declarações do presidente sobre o vírus. Processo similar ocorreu em relação à prevenção contra a Covid-19. Sem nenhuma informação externa, 88% dos eleitores do capitão disseram que era importante tomar medidas de combate ao vírus. Mas a taxa dos que defendiam formas de prevenção caiu para 68% após ouvirem falas de Bolsonaro sobre o assunto.

DITADURA - Apoiadores em Brasília no último dia 19: pregação pela volta do regime militar ao país (Sergio Lima/AFP)

Ao pregar contra as recomendações da Organização Mundial de Saúde, Bolsonaro reforça a opção por fidelizar uma minoria que o tornaria competitivo na eleição presidencial de 2022. “Os dilemas colocados por ele são sofismas. A economia vai sofrer muito mais se a questão sanitária não for controlada”, lembra Marco Ruediger, diretor de Análise de Políticas Públicas da FGV. Foram também as ambições eleitorais do presidente que impulsionaram o discurso de enfrentamento de governadores que têm planos de concorrer ao Planalto, como é o caso do paulista João Doria (PSDB) e do fluminense Wilson Witzel (PSC). Em vez de unificar a estratégia de combate ao vírus em dois dos estados mais atingidos pela pandemia, Bolsonaro os acusou de paralisar atividades econômicas para prejudicar sua candidatura à reeleição. “O desabastecimento ou a recessão econômica são discursos agressivos, que jogam com o medo, mas que criam defesas futuras para quando ele tiver de acirrar o antagonismo com esses políticos mais ao centro”, entende Ruediger.

INFLUÊNCIA - Meyer Nigri: o dono da construtora Tecnisa indicou Nelson Teich para ser o ministro da Saúde (Germano Luders/Exame)

O radicalismo serve ao interesse eleitoreiro do presidente, mas já afasta da sua base de apoio outros grupos que endossaram sua chegada ao Planalto. O Movimento Brasil Livre (MBL) publicou em seu Twitter que “a ânsia pelo poder domina Bolsonaro, que sacrifica vidas em prol de um discurso e se demonstra pequeno demais para o cargo que ocupa”. Além de provocar divisões, o extremismo virou assunto para a Justiça. No dia 21, o ministro do STF Alexandre de Moraes autorizou a Procuradoria-Geral da República (PGR) a investigar a organização de manifestações de caráter antidemocrático, como a que contou com a presença de Bolsonaro. Conforme revelou o blog Radar, do site de VEJA, três deputados da base bolsonarista são citados no inquérito aberto por Augusto Aras. Por enquanto o capitão não é alvo de nenhuma investigação.

Enquanto líderes mundiais aproveitam o momento para unir seus respectivos países na luta contra o inimigo comum, o coronavírus, Bolsonaro perdeu a chance de ficar maior nesta crise. Chefes de Estado viram os índices de aprovação crescer com a defesa e a adoção de medidas sanitárias ante a pandemia, como é o caso do presidente francês Emmanuel Macron e do primeiro-ministro italiano Guiseppe Conte. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump manteve sua avaliação estável, embora as brigas públicas que comprou com governadores também tenham motivado eleitores republicanos a organizar carreatas contra o isolamento social. A exemplo do americano, que é sua principal fonte de inspiração, Bolsonaro mostrou no auge da pandemia que sua prioridade não é liderar o país, mas, sim, perpetuar-se no poder — mesmo tendo de aumentar a cada dia sua aposta arriscada em confrontar um adversário tão imprevisível e perigoso quanto o coronavírus.

Com reportagem de Eduardo Gonçalves

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Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684

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