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Roberto Campos Neto: “A luta contra a inflação não está ganha”

Alvo de críticas de Lula, o presidente do BC sustenta que a autonomia do banco é uma evolução institucional e elogia o esforço do governo na área fiscal

Por Ricardo Ferraz Atualizado em 25 ago 2023, 10h37 - Publicado em 25 ago 2023, 06h00

No comando do Banco Central, Roberto Campos Neto, 54 anos, mantém noite e dia os olhos sobre as curvas da inflação, que ele tem por missão controlar. É desse equilíbrio que depende a taxa de juros do país, a Selic, estabelecida por critérios técnicos, mas que, vire e mexe, adentra a arena política — onde não deveria estar. Nos últimos tempos, Campos Neto recebeu pressão do presidente Lula, à qual não cedeu, para baixar a taxa. Ela só viria a cair quando o independente BC avaliou que era hora. Nomeado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, Campos Neto é conhecido pelo traquejo em lidar com o Congresso e com quadros políticos de variados naipes. Formado em economia pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, com extensa estrada no mercado financeiro, o neto de Roberto Campos (1917-2001), que foi ministro do Planejamento de Castello Branco, entre 1964 e 1967, e agitador-mor da bandeira do liberalismo econômico no país, pretende voltar à iniciativa privada quando encerrado seu mandato, em 2024. “Não tenho ambições políticas”, diz nesta entrevista a VEJA. A seguir, os principais trechos (Ouça a entrevista também pelo Spotify)

O voto de Minerva dado pelo senhor em favor da queda de meio ponto percentual na taxa de juros surpreendeu o mercado. O que motivou sua decisão? Fiquei surpreso com a surpresa do mercado. Na reunião anterior do Copom, já havia uma divisão em torno do que sinalizar em relação ao próximo encontro. Discutiu-se se íamos deixar a porta aberta, indicando uma queda futura, ou fechada, sem apontar nada nessa direção. Eu estava no primeiro grupo, porque a inflação à época já revelava melhora. A divergência seguiu parecida entre os conselheiros. Os que queriam a porta aberta lá atrás, como eu, foram os mesmos que defenderam agora o corte de meio ponto na Selic.

Foi o primeiro encontro do Copom depois da nomeação de Gabriel Galípolo para a diretoria de política monetária. Isso mudou alguma coisa? Nada mudou. A autonomia do Banco Central prevê novos diretores que, às vezes, têm opiniões diferentes. Cabe a seus chefes de gabinete fazer exposições sobre cenário internacional, crédito, inflação, emprego e atividade econômica. A gente aplica modelos para testar diversas trajetórias de juros e seus impactos. No final das contas, a decisão acaba sendo essencialmente técnica.

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Pode-se esperar mais cortes futuros na Selic? Foi consenso absoluto que o ritmo para quedas e elevações deve ser sempre de meio ponto. A luta contra a inflação não está ganha. Uma parte dela se situa ainda bastante acima da meta. O setor de serviços apresenta melhora, mas não no patamar que gostaríamos. Esse cenário demanda um ambiente de juros restritivos. O tamanho do aperto, na verdade, vai depender do desenrolar da economia.

“O atual governo não indicou a diretoria do BC e tem de conviver com isso, o que vale também para o banco. Vários de nossos quadros estão aprendendo com essa situação inédita”

Alguns analistas dizem que o BC demorou para reagir ao aumento da inflação, em 2020, o que também teria atrasado a derrubada dos juros. Concorda? O Banco Central brasileiro foi o primeiro do mundo a elevar os juros e um dos primeiros a baixá-los. Na comparação com outros BCs, nossa interpretação da situação global tem se mostrado privilegiada. Entendemos que a inflação ia persistir no mundo e que havia um componente forte de demanda, com a expansão do consumo em certas áreas. E isso se confirmou. Quando discuto com outros bancos centrais, a percepção é que o Brasil atuou de maneira firme e rápida, algo difícil de acontecer sobretudo em ano de eleição. Mostramos independência.

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O senhor tem sido alvo de críticas severas por parte do presidente Lula, que já declarou que é “tinhoso” e “não pode achar que é o dono do Brasil”. Como encara esses ataques? Faz parte do processo de autonomia do Banco Central, que está sendo testado agora. Afinal, é a primeira vez que a gente tem a conjunção de independência do banco com mandatos não coincidentes entre o chefe do Executivo e a autoridade monetária. O presidente ganhou de forma democrática e é seu direito tecer críticas. Mas não custa lembrar que detenho apenas um voto entre nove conselheiros do Copom.

Muitas críticas foram pessoais. Não machucaram? Não. Eu estava mais ou menos preparado. Outros países passaram por fenômenos parecidos. Durante algum tempo, Jerome Powell, o presidente do banco central americano, também foi duramente criticado pelo ex-presidente Donald Trump. Depois, as coisas se acomodaram.

Segundo alguns economistas, há janelas de oportunidade em que o BC teria condições de sustentar juros mais baixos, por um período curto, como forma de estimular o crescimento. Como enxerga essa possibilidade? O objetivo principal do banco é controlar a inflação com o mínimo de impacto no crescimento, no emprego e no crédito para as empresas. Poucos países reduziram a inflação da forma como o Brasil fez. O PIB e o crédito foram revisados para cima, e a taxa de desemprego está melhor do que antes da pandemia. Foi um pouso suave, sinal de que o trabalho vem sendo bem-feito.

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O senhor tem receio de que essa política venha a ser alterada após o fim do seu mandato? Não acredito. Se a nova linha de pensamento for muito diversa do atual sistema de metas da inflação, o quadro técnico vai indicar que esse é um rumo equivocado. Sempre haverá debate, mas, independentemente de quem se sentar na cadeira, o trabalho vai ser pragmático e se dar sob a influência dos excelentes quadros do BC.

A relação de um Banco Central autônomo com o governo tem sido mais difícil no governo Lula do que no Bolsonaro? O atual governo não elegeu o corpo de diretores do BC e está tendo de conviver com isso — o que vale também para a instituição, que está aprendendo com a situação. O saldo será um ganho institucional valioso à sociedade brasileira. Os dois lados estão se adaptando a uma situação inédita.

Recentemente, circularam notícias de que o senhor ajudou Jair Bolsonaro na campanha presidencial, desenvolvendo um agregador de pesquisas eleitorais que era divulgado ao mercado. Isso ocorreu? Se o antigo governo precisasse de minha consultoria nessa área, estaria em maus lençóis. Não entendo nada de política. Chega a ser engraçado ler essas notícias. Nunca conversei com o Bolsonaro sobre pesquisa nem com marqueteiros dele sobre qualquer assunto. O BC subiu os juros até três meses antes do pleito, colocando-os em um patamar elevado justamente para ter certeza de que no próximo mandato poderiam baixar, quem quer que vencesse a disputa. É preciso deixar os factoides de lado.

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Mas há um fato objetivo: em maio de 2022, o senhor se encontrou com o então presidente Bolsonaro em uma reunião não divulgada nas agendas oficiais. Do que trataram? Acho que foi para discutir o Plano Safra, de incentivo ao agro. De vez em quando, Bolsonaro me chamava. Se o presidente Lula fizesse o mesmo, também iria. Horas depois daquele encontro com Bolsonaro, aliás, a gente subiu os juros em 1 ponto percentual, o que indica que o BC atuou de forma autônoma e assim vai continuar.

O senhor e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fazem questão de explicitar que mantêm uma boa relação. Se falam todo dia? Não chega a tanto, mas sempre tivemos boa interlocução. O ministro está tentando executar um trabalho difícil na parte fiscal. Historicamente, o país tem dificuldades de cortar gastos de forma estrutural. Vejo um esforço do governo nessa linha. Agora, terá de aprovar medidas para aumentar a arrecadação e é aí que observamos alguma incerteza. É necessário haver harmonia entre os dois lados.

O déficit do governo no primeiro semestre já supera os 40 bilhões de reais. O arcabouço será suficiente para colocar o país no azul, como prometido para o ano que vem? O governo está dizendo que vai empatar despesas e receitas em 2024. Já o mercado acredita em um déficit em torno de 0,8% do PIB. Mesmo que o superávit primário não seja igual a zero, se o governo mostrar um empenho nessa direção, consegue ganhar tempo. Em algum momento, porém, teremos de enfrentar o fato de o Brasil apresentar um elevado aumento de gastos, em termos reais, na comparação com o mundo emergente e com o patamar desejável para que o arcabouço funcione a longo prazo.

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“Meu avô (Roberto Campos) repetia que não gostaria de me ver seguindo o seu caminho. Acabo o meu mandato no banco e volto à iniciativa privada. Não tenho ambição política”

Há quem defenda que um crescimento mais acentuado ajudaria na parte fiscal, o que justificaria uma queda maior nos juros. Faz sentido? Juros não são causa, são consequência. Vários governos caíram na tentação de acreditar que uma inflação um pouquinho maior ajudaria o quadro fiscal e permitiria fazer programas de transferência de renda para os pobres. Isso cria uma sensação aparente de melhoria, mas quem acaba pagando pela inflação são os que estão na camada de baixo da pirâmide social. O pior é que esse ciclo perverso, repetido em lugares como Argentina e Turquia, acaba gerando uma espiral de falta de credibilidade na moeda.

Quais os impactos econômicos que pagamentos digitais como o Pix e o futuro Drex podem trazer? O BIS, que é uma espécie de Banco Central dos bancos centrais, mostra em um estudo que o Pix estimulou a abertura de 9 milhões de contas bancárias e deu impulso à formalização do trabalho. Pequenas empresas que têm itens de baixo valor também puderam se viabilizar. Os bancos estão animados com o Pix, porque pode ser usado para colocar mais produtos financeiros à disposição, como financiamentos e pagamento programável. Até o governo está economizando uma fortuna. Antes se cobrava imposto através dos bancos. Hoje o contribuinte paga suas taxas via moeda digital, que sai de graça à União.

Na Argentina, o candidato à Presidência à frente na corrida eleitoral, Javier Milei, defende a dolarização da economia e a extinção do Banco Central. Como vê essa proposta? Milei entende que o Banco Central fez mais mal do que bem à Argentina porque emitiu dinheiro e desvalorizou a moeda, quando na verdade a instituição só instrumentalizou uma política de governo. Para promover a dolarização, é preciso que o peso seja barato o suficiente para que a moeda americana ingresse no país de forma rápida. Agora, se a desvalorização for muito aguda, pode acabar acentuando a pobreza.

O senhor pretende cumprir o mandato até o fim de 2024? Sim, fico no cargo. Acho que devo isso a todos os que acreditaram no projeto da autonomia do BC. Esse não é um assunto meu. É uma pauta institucional do país.

Seu avô, Roberto Campos, teve longa trajetória política. Pensa em seguir seus passos? Não, e meu avô concordaria. Ele repetia o tempo todo que não queria isso para mim. Depois do BC, planejo voltar ao mundo privado. Não tenho ambição política.

Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856

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