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Luiz Fux: “O Brasil não admite retrocesso”

Novo presidente do STF elogia a Lava Jato e diz que discussão sobre condenação em segunda instância deve ser retomada

Apresentado por Atualizado em 4 mar 2021, 20h31 - Publicado em 11 set 2020, 06h00

Em um passado não muito distante, a troca de guarda no comando do STF passava praticamente em branco, misturada à sonolenta profusão de rituais burocráticos de nomeações em Brasília. Nos dias de hoje, entretanto, é inevitável que os holofotes se voltem para a chegada do novo presidente, Luiz Fux, que assumiu o cargo na quinta-feira 10, em sucessão a Dias Toffoli. Na última década, a Corte ganhou um protagonismo inédito em sua história na luta contra os desvios de dinheiro público nos casos do mensalão e do petrolão, na oposição ferrenha a ideias obscurantistas que vêm ganhando força no país e na batalha pela preservação da democracia. “O Brasil não admite retrocesso”, afirma Fux. A visibilidade transformou também o Supremo em vidraça, incluindo desfile de pixulecos de ministros em manifestações de ruas, protestos na porta da instituição por parte de grupos extremistas e bombardeio virtual com ameaças e fake news. Na entrevista a seguir, o novo presidente do STF comenta esse histórico e fala de suas prioridades.

O STF tem sido protagonista nas principais questões nacionais, mas, segundo o Datafolha, em agosto, 29% consideravam ruim ou péssima a atuação da Corte. Como o senhor pretende melhorar essa percepção? Abraham Lincoln, 16º presidente americano, no famoso discurso de Gettysburg, destacou que todo poder emana do povo e é exercido em prol do povo. Isso se aplica ao Poder Judiciário. Em meu modo de ver, melhorar essa percepção demanda evitar que o STF assuma um protagonismo que pertence aos demais poderes. Em segundo lugar, a Corte deve se ajustar ao sentimento constitucional do povo, especificado na Carta Magna, o que não se confunde com submissão à opinião pública.

O STF tem pela frente a questão do julgamento da possível suspeição do ex-juiz Sergio Moro nos processos da Lava-Jato contra o ex-presidente Lula. O senhor sempre apoiou a operação e, do outro lado, nas mensagens da Vaza-Jato, integrantes da força-tarefa manifestavam confiança no seu trabalho. Na sua presidência, qual será a relação do STF com a operação? A confiança dos atores do processo no juiz é o melhor atributo que se pode passar para quem recorre à Justiça. Nada mais inquietante para as partes do que um juiz suspeito. O descrédito no Judiciário alimenta o desejo de fazer justiça pelas próprias mãos.

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Antes quase uma unanimidade, a Lava-Jato tem sido criticada por excessos e desrespeitos à lei. Quais foram os acertos e os tropeços da investigação? Forçoso convir que o mensalão e a Lava-Jato foram operações exitosas no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Eventuais erros formais devem ser corrigidos pelos mecanismos processuais, mas não eliminam as verdades inequívocas surgidas na tramitação do processo. Ninguém inventou nada. Há muitas provas, o dinheiro foi encontrado e a confissão dos delatores mostrou o verdadeiro caminho das pedras.

“Eventuais erros formais da Lava-Jato devem ser corrigidos pelos mecanismos processuais, mas ninguém inventou nada. Há provas. Nada justifica derrubar a operação”

O trabalho dos procuradores ganhou popularidade e se transformou em símbolo do país na luta contra a corrupção. O que é necessário fazer para avançar nessa batalha? O combate à corrupção tem de ser exemplar e contínuo. O STF deve conduzir os processos com imparcialidade. Punir com rigor os culpados, absolver os inocentes e firmar jurisprudência no sentido de que é direito fundamental do Estado soberano fazer valer sua ordem penal.

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Na luta contra a impunidade, um ponto que gerou muita polêmica foi a mudança do entendimento do STF na condenação em segunda instância. Na ocasião, o senhor foi um dos votos vencidos. Há chances de uma nova reviravolta nessa questão? A presunção de inocência não tem nenhuma relação com a prisão em segunda instância. A própria Constituição admite a prisão preventiva, que pode durar até o último recurso, assim como a prisão em flagrante e a prisão temporária. Ora, se essas prisões são constitucionalmente previstas, por que não pode haver prisão em segunda instância? A jurisprudência que se firmou o foi com baixa densidade jurídica. A Corte não está em paz sobre esse tema e, mais dia, menos dia, teremos um novo encontro com essa questão.

Agora, há uma leva de governadores bastante enrolados na Justiça por malfeitos. O senhor se declarou suspeito para julgar a ação que trata do impeachment de Wilson Witzel no STF por “incompatibilidade”. Qual foi o motivo? Participei de inúmeros eventos jurídicos com o governador do Rio de Janeiro, na época em que ele era magistrado. Há fotos de almoços e comemorações acadêmicas. Isso poderia gerar um sentimento contrário à minha participação no julgamento. A imagem da “mulher de César” deve acompanhar qualquer magistrado em sua trajetória. Não basta ser honesto, tem de parecer honesto.

Devido ao mensalão e ao petrolão, o STF teve a pauta tomada por questões criminais nos últimos anos. Deveria haver uma mudança de rota para voltar a ser uma Corte constitucional? A instituição deve ater-se ao controle da constitucionalidade. A utilização epidêmica do STF para julgamento de habeas-corpus é inacreditável. Transformaram o STF em quarta instância. É urgente uma mudança regimental quanto à competência das matérias sujeitas à Corte. Além disso, criaremos no STF uma secretaria específica para a gestão dos precedentes do Supremo, de modo a monitorar, com uso de inteligência artificial, como as instâncias ordinárias estão aplicando os nossos entendimentos. Isso permitirá adotarmos incentivos de coesão judicial e gestão de conflitos.

Na presidência da Corte, Dias Toffoli teve uma relação considerada próxima do presidente Jair Bolsonaro. Como deve ser a postura do senhor em relação ao chefe do Executivo? Os poderes devem ser harmônicos e independentes. Entendo que a liturgia deve reinar nessas relações. Harmonia não é intimidade, muito embora respeite a postura de cada um, sem nenhuma crítica. O homem é o seu estilo de agir.

Jair Bolsonaro reclama com frequência de intervenções do Supremo em atribuições do Executivo — às vezes por meio de decisões monocráticas. É uma crítica justa? Justiça que tarda é severa injustiça. Há casos de urgência que demandam pronta resposta judicial, sem prejuízo do referendo do colegiado a posteriori. No mundo civilizado, pratica-se a tutela de urgência.

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Em muitas decisões, o Supremo também foi acusado por parlamentares de assumir o papel que deveria ser do Legislativo. Existe alguma correção a ser feita nesse sentido? A Constituição estabelece a competência dos poderes por meio da cláusula pétrea da separação e harmonia entre eles. Não obstante, o Judiciário é o único poder com competência para aferir a constitucionalidade dos atos dos demais poderes. O STF, por seu turno, só age quando é provocado. Os partidos políticos acionam em grande parte o STF quando vencidos na arena política ou quando discordam dos atos do Executivo. Nesse momento, é dever do STF dar uma resposta. Acaso um decreto ou um ato administrativo do presidente contravenham regras ou princípios constitucionais, cabe ao STF afastá-los do mundo jurídico.

Ainda com relação ao Congresso, o senhor pretende pautar em sua gestão questões controversas como a descriminalização da maconha e do aborto? Ou acha que isso deve ser resolvido pelo Parlamento? O estado democrático de direito tem como premissa a proeminência do Legislativo. Seguindo essa premissa, se o tema estiver em tramitação legislativa regular e tempestiva, cabe ao STF aguardar. Sucede que, por vezes, esses temas relevantes dormitam no Parlamento. Nessa hipótese, a deferência cede lugar à intervenção necessária do STF para se garantir a discussão democrática do tema.

Outra questão importante e sempre motivo de críticas é o custo da Justiça no Brasil, que subiu de 351 para 479 reais por habitante nos últimos dez anos, já descontada a inflação, segundo um levantamento recente do Conselho Nacional de Justiça. O que é possível fazer para reduzir esse custo exagerado? O Judiciário tem se reinventado nos últimos anos ao ingressar na era digital. No futuro, os fóruns não necessitarão de espaços físicos, pois todos os serviços serão oferecidos on-line. Isso tende a diminuir muito as despesas, pois tudo estará disponível na internet. O alinhamento entre a inteligência humana e a artificial também melhorará o gerenciamento de processos e de recursos humanos. Os robôs realizam em cinco segundos o trabalho de 100 funcionários.

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“Atitudes de ódio não combinam com a democracia e põem em risco o estado de direito. Grandes tragédias da humanidade decorreram da indiferença com o vilipêndio do outro”

Nos últimos meses, a Corte foi alvo de ataques antidemocráticos e há em curso uma investigação sobre isso. Qual o risco desse tipo de atitude? A democracia é um regime jurídico-político que pressupõe a liberdade de escolhas e de expressão. Mas essas liberdades não admitem ultrapassar os limites do respeito às instituições. Atitudes de ódio ou discursos de ódio são incompatíveis com a democracia. É um risco não coibir essas manifestações ou incitá-las. As grandes tragédias da humanidade decorreram da indiferença com o vilipêndio do outro. Consequentemente, a compactuação ou a omissão em relação a esses movimentos põem em risco a democracia e o estado de direito. Liberdade e intolerância não combinam.

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O Brasil vive um retrocesso obscurantista, com pessoas defendendo do terraplanismo à volta da ditadura. Há um risco de retrocesso? O povo vive da confiança legítima que as instituições do país inspiram. É muito importante que as instituições gozem da legitimidade democrática do povo. Isso só ocorre quando se ouve a voz das ruas. Nenhum poder deve dar as costas para a sociedade. A par das paixões passageiras, o povo sabe o que quer e o que espera das instituições. Ouvir e ponderar não é subjugar. A Lei da Ficha Limpa e a do nepotismo são resultados dos reclamos populares. Mas nenhuma insatisfação deve conduzir aos tempos sombrios que vivemos na ditadura. O Brasil não admite retrocessos.

Qual o legado que pretende deixar em seu período na presidência do STF? A imagem de uma Corte respeitada pelos seus exemplos e precedentes judiciais. Um Judiciário forte, com independência olímpica, símbolo vivo da concretização dos direitos humanos, catalisador da democracia e defensor do estado de direito.

Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704

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