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Expondo a América

Aproximação com Cuba foi acerto em semanas implacavelmente cruéis para os EUA no final de 2014, afirma a especialista Anne-Marie Slaughter

Por Anne-Marie Slaughter
13 jan 2015, 21h34

Não fosse pelo corajoso e inesperado avanço diplomático do Presidente Barack Obama com Cuba, as últimas semanas de 2014 teriam sido implacavelmente cruéis para os Estados Unidos. As falhas profundas no sistema de justiça do país, a continuidade do racismo na sociedade e os registros recentes de tortura e abuso do governo americano ficaram expostos para o mundo inteiro ver.

O vídeo de cinco policiais contendo e então assassinando um homem, apesar das alegações de que ele não conseguia respirar, poderia ter vindo de muitos países ao redor do mundo. Mas a morte de Eric Garner em Nova York, como a de Michael Brown em Ferguson, Missouri, no trimestre passado e de Tamir Rice, de 12 anos, em Cleveland, em novembro, refletem o elevado risco que os afro-americanos enfrentam nas mãos da polícia em muitas cidades dos EUA. De fato, de acordo com uma análise recente, a probabilidade de jovens afro-americanos serem baleados e mortos pela polícia é 21 vezes maior em comparação a jovens brancos.

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Depois veio o lançamento pela Comissão Especial de Inteligência do Senado Americano de seu relatório de 528 páginas sobre o programa de detenção e interrogatório da CIA, estabelecido após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos. Aquilo que a Comissão descreveu como um “sumário executivo” detalhou o terrível comportamento de oficiais do governo no cumprimento de instruções de seus superiores.

Pior, ao invés de procurar fazer as pazes pelos abusos, pelo menos um grupo de antigos funcionários dos EUA procurou justificá-las. Quando questionado na televisão americana sobre a estimativa de que 25% de detidos eram inocentes, o ex-vice-presidente Dick Cheney respondeu: “Não tenho nenhum problema contanto que alcancemos nosso objetivo. E o nosso objetivo é pegar os caras que cometeram o atentado em 11 de setembro e evitar outro ataque contra os Estados Unidos.” Por sua vez, alguns oficiais atuais da CIA continuam a insistir no valor do programa de “interrogatório ampliado” dos Estados Unidos (que Obama interrompeu), apesar da conclusão do relatório do Senado de que as técnicas empregadas não trouxeram inteligência de valor.

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De fato, outros relatos da “guerra global ao terror” dos Estados Unidos também deixam claro que muitas das pessoas que foram detidas e torturadas não eram ameaças à segurança dos Estados Unidos – pelo menos não até que as ações dos EUA as fizeram ser. Na semana em que o relatório do Senado foi divulgado, eu estava lendo o novo livro de Anand Gopal “No Good Men Among the Living”, que narra a história contemporânea do Afeganistão através dos olhos de um apoiador do ex-presidente Hamid Karzai, um comandante do Talibã e uma dona de casa nascida em Cabul que passou anos em purdah (confinamento) no Estado Talibã.

E outra vez, a mesma história se repete: um mediador local está disposto, até mesmo ansioso, para apoiar o novo governo bancado pelos EUA, apenas para ser denunciado como um membro do Talibã por um colaborador afegão – normalmente por razões políticas ou pessoais – para as desavisadas tropas americanas. De fato, esse padrão se repete nos relatos de qualquer um que viveu no Afeganistão, qualquer um que fale a língua, e entendeu o funcionamento do patronato e do poder por lá. Muitas vezes foram estes homens denunciados que foram detidos – e torturados – por anos.

Do meu ponto de vista como especialista em política externa dos EUA, a única coisa boa nos últimos meses foi o restabelecimento das relações diplomáticas com Cuba realizada por Obama. Finalmente, os Estados Unidos têm uma oportunidade de recomeçar, não só com Cuba, mas também com os países do Caribe e da América Latina que têm exercido muita pressão sobre os EUA para alterar a sua postura. Desta forma, o movimento vai ficar como uma das realizações mais substanciais de Obama em política externa, com implicações que irão reverberar por décadas.

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Novamente um assunto comum surge através de todos estes acontecimentos recentes, da mesma forma, bom e ruim. Em cada caso, as instituições dos EUA e funcionários responsabilizam outras instituições dos EUA e funcionários.

O Congresso documentou e divulgou ações do poder executivo no relatório de tortura. A senadora Dianne Feinstein trabalhou obstinadamente para garantir que a Comissão de inteligência do Senado pudesse pesquisar e documentar as práticas de interrogatório dos EUA, mesmo diante da firme oposição por parte da CIA (que até mesmo furtivamente pesquisou os computadores da Comissão).

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“Há aqueles que aproveitarão o relatório e dirão que ‘viram o que os norte-americanos fizeram'”, disse Feinstein, “e eles vão tentar usá-lo para justificar más ações ou incitar mais violência. Não podemos evitar isso. Mas a história nos julgará por nosso compromisso com uma sociedade justa, regida pela lei e a vontade de encarar uma verdade nua e crua e dizer: ‘nunca mais’.”

Da mesma forma, a imprensa e muitos grupos da sociedade civil documentaram e divulgaram não só as mortes de Brown, Garner e outros, mas também como esses casos refletiram um padrão de racismo discriminatório por parte da polícia. E quando Obama anunciou a restauração de relações diplomáticas plenas com Cuba, a Casa Branca descreveu o último meio século de política dos EUA como uma “abordagem falha,” isolando os Estados Unidos, restringindo a sua influência na política hemisférica e amarrando suas mãos em Cuba.

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Os americanos não são melhores (nem piores) do que qualquer outro povo. Não temos o direito de moralizar e temos muito a aprender com os outros. Felizmente, nossos pais e fundadores nos deram um dom excepcional de um sistema político que nos empurra continuamente no sentido da autocorreção.

A capacidade de corrigir erros nunca pode justificar fazer errado em primeiro lugar. O ponto de exposição não é celebrar a nossa capacidade de expor. Nós, americanos devemos aprender a olhar para nós mesmos e nosso governo como os outros fazem. Temos muito pelo que responder. Mas pelo menos sabemos que fizemos as perguntas certas.

Anne-Marie Slaughter, presidente e CEO da New America Foundation, é autora de The Idea That Is America: Keeping Faith with Our Values in a Dangerous World.

(Tradução: Roseli Honório)

© Project Syndicate 2014

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