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Sonho de muitos, chance para muito poucos

No país do futebol, meninos e suas famílias fazem todo tipo de sacrifício pela oportunidade de se tornar um craque

Por João Marcello Erthal e Rafael Lemos
1 ago 2010, 14h44

Se quiserem ter alguma chance no esporte, os meninos têm pouco ou nenhum tempo para a escola ou qualquer formação diferente das lições de drible, passe, marcação e todo tipo de forja para ser herói do gramado

Pouco depois das oito da manhã, em um resort de luxo em Angra dos Reis, um grupo de 92 garotos com idades entre 8 e 13 anos se prepara para viver mais um dia de sua semana de craques do futebol internacional. São meninos de classe média que, por 2 000 reais cada, participam do Milan Camp Junior, colônia de férias de julho que o clube italiano leva a 42 países e atrai pais e filhos que sonham com os dribles de Ronaldinho Gaúcho, Kaká, Cristiano Ronaldo e ídolos da bola. Os jovens amantes do esporte têm amostras de preparação física, orientação de técnicos europeus, treinos e jogos em um gramado – construído sobre um campo de golfe – de fazer inveja a muitos estádios de nível profissional.

Na mesma semana, às 13h de uma sexta-feira, no esburacado campo de terra da sede náutica do São Cristóvão, na Ilha do Governador, 50 garotos alimentavam o mesmo sonho. Sob o sol forte, o ‘rachão’ organizado pelo técnico Madeira era, para garotos como Gabriel Ribeiro, a oportunidade de trilhar, nas divisões de base do futebol carioca, um caminho para a vida de fama, dinheiro e sucesso dos ídolos do esporte nacional. Tímido e de poucas palavras, ele não titubeia ao falar da motivação para seguir a carreira de atleta. “Quero jogar e ser famoso”, almeja.

Até hoje Gabriel nunca precisou pagar uma escolinha e passou quatro anos e meio jogando no Fluminense, a convite do clube. O franzino jogador de 14 anos aparenta ter ainda menos idade, mas a semelhança física dele com o santista Neymar – o craque do momento – desperta curiosidade. Dentro das quatro linhas, o meia Gabriel honra o nome do ídolo e rouba a cena. A atuação de gala rende a ele e outros dois meninos o aval do olheiro Renato Campos. “Esses, nós vamos federar”, aponta, com satisfação, usando o jargão futebolístico para definir a inscrição de um jogador numa federação.

As “peneiras”, como são chamadas as seleções de garotos para ingressar nos clubes, não têm este nome à toa: entram em campo algumas centenas de garotos para que um desperte interesse dos treinadores e olheiros. Nas peneiras organizadas pelo Flamengo em suas escolinhas, em 90 pontos pelo Brasil, passam perto de 800 meninos por ano, para que quatro sejam selecionados para testes. Com sorte e treinos diários, chega-se às divisões de base. E, de lá, só cerca de 10% vão conseguir vaga no futebol profissional. Flamengo e Corinthians, os maiores clubes brasileiros, são também os líderes em número de escolinhas: são 57 do Flamengo, em sistema de franquia, e 52 do Corinthians, que mantém escolas próprias.

As escolinhas são para quem quiser pagar e jogar. Mas olheiros e empresários aproveitam, entre as levas que se apresentam voluntariamente, para garimpar e fazer dinheiro com adolescentes com fome de bola e disposição para enfrentar, desde o início da vida, a rotina de treinos e a disputa por espaço.

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“Como papel em branco” – Treinador das divisões de base do Milan, Massimiliano Quatti, que comanda a colônia de férias em Angra, está acostumado a trabalhar com jovens talentos da bola. Como explica Quatti, a partir deste ano os Milan Camp passam a selecionar garotos que se destaquem para entrar de verdade nas fileiras do clube. O que dá esperança ao colombiano Juan Sesbatian Amaya, 15 anos, que está fora da faixa etária da colônia mas insistiu tanto que acabou sendo aceito. Morador da Barra da Tijuca, bairro abastado da Zona Oeste do Rio, ele treinou por dois meses no CFZ, time de Zico e teve que parar porque quebrou o braço. Juan, que nunca participou de uma peneira para valer, retoma os treinamentos e sonha alto. “Quero jogar num clube grande”, avisa o garoto, que fala três idiomas e já está acostumado a se mudar de país por conta da profissão da mãe, ligada ao setor petrolífero. Aos olhos de Quatti, todos os que passam pelos Milan Camp são crianças e não deixam de ter seu potencial.

“Criança é criança, seja no Brasil, na Itália ou Suíça. Gosto de trabalhar com elas porque aprendem muito mais rápido. São como um papel em branco”, acredita Quatti.

Gabriel Ribeiro, 14 anos, no campo do São Cristóvão
Gabriel Ribeiro, 14 anos, no campo do São Cristóvão (VEJA)

No Brasil, sede da próxima Copa do Mundo, onde partidas do mundial são como feriados nacionais, a ‘folha em branco’ é o problema para os jovens, que, se quiserem ter alguma chance no esporte, têm pouco ou nenhum tempo para a escola ou qualquer formação diferente das lições de drible, passe, marcação e todo tipo de forja para ser herói do gramado.

O ator Vinícius de Oliveira, que ficou conhecido em todo o Brasil como o menino Josué, em ‘Central do Brasil’, de Walter Salles, mergulhou no mundo das peneiras do futebol e dos treinos desses meninos por quatro anos, num laboratório para o seu personagem no filme Linha de Passe, também de Salles. “Tinha pouca gente que estudava. Os caras treinavam em dois turnos, faziam treinos pesadíssimos”, conta.

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A briga por uma vaga – A competitividade, mesmo antes das divisões de base, é para valer. “Eles chegam na peneira querendo mostrar o futebol de qualquer jeito. Pegam a bola e saem jogando sozinhos. Sem falar que a receptividade dos que já estão lá não é muito boa. Afinal, eles têm medo de perder a vaga pra alguém que está chegando”, lembra.

Se o sonho dos garotos é chegar a um clube, o eldorado dos empresários é descobrir alguém para formar, valorizar o passe e lucrar no futebol profissional. Não é à toa que boa parte dos jovens tem na torcida, além dos pais, agenciadores. Para ver o pequeno craque brilhar, vale tudo. “Já peguei no meu clube gente que oferecia dinheiro ao técnico para escalar o jogador dele. Não estou falando de ouvir, mas do que vivenciei. Já orientei pais e famílias. Mas muitos garotos de 15, 16 anos não têm os pais por perto, e sim gerentes”, afirma Zico, eterno camisa 10 do Flamengo e atualmente diretor-executivo de futebol do clube.

Zico falou a VEJA.com sobre o que gostaria de ver nas divisões de base na Gávea. “O ideal seria o garoto treinar de manhã e estudar à tarde, ou estudar de manhã e treinar à tarde. A regra no país infelizmente não é essa. Mas isso é possível. O Vasco, por exemplo, já montou uma escola dentro do clube”, compara o ex-jogador.

Entre o ideal e o que se vê no Brasil hoje a distância ainda é grande. A realidade do futebol brasileiro não comporta alguém que queira manter-se na escola enquanto se forma como jogador. O exemplo mais conhecido – e mais radicalmente oposto – de como tornar isso possível se dá no basquete profissional nos Estados Unidos, onde a entrada no esporte se dá pelas escolas e, dependendo do desempenho nas quadras, pode render bolsas para as universidades mais disputadas – ainda que o jovem não seja um gênio na cadeira que vai ocupar. Levar bomba nos treinos ou nas provas, no entanto, pode mandar pelos ares a carreira.

Morador de Cordovil, na zona norte do Rio, o menino Gabriel terá que administrar uma agenda cansativa depois de ter sido aprovado na peneira do São Cristóvão. Ele precisará se dividir entre as aulas em na escola municipal Francisco José Oliveira Viana, no seu bairro, e os treinamentos na sede do clube. Aluno do sexto ano do ensino fundamental, o adolescente não pensa em uma carreira formal como alternativa ao esporte. “Meus planos A e B são jogar futebol”, confessa. A mãe, Ana Paula Ribeiro, 40, admite que, devido ao trabalho, sobra pouco tempo para monitorar o filho. Ela sustenta sozinha o pequeno craque, com um salário mínimo do emprego de empacotadora numa fábrica de pães. “Desde pequeno, ele sempre teve o dom. É o sonho dele, então, faço o que posso para ajudar”, conta orgulhosa.

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A paixão pelo futebol é um pré-requisito. Mas o somatório da fome de bola dos filhos com a esperança de riqueza das famílias funciona como um combustível a mais para empurrar os jovens em direção aos clubes. Zico, que chegou ao Flamengo com 13 anos, compara os objetivos dos meninos de sua época com os de hoje. “Eu era um torcedor, um apaixonado que trocou contrato no América pela chance de arriscar no Flamengo. Hoje, o garoto vem porque jogadores aparecem nos jornais, viram celebridade, têm carros, mulheres, são ricos. O futebol está antes da escola, antes de tudo. Ele vira a salvação da família”.

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