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“Bons líderes protegem a oposição”

Para o pensador búlgaro, a moderação é o traço chave das democracias. Inversamente, o descomedimento é o vício que engendra seus "inimigos íntimos". Em entrevista ao site de VEJA, Todorov analisa o combate a essas ameaças e ressalta a importância da crítica para a saúde das democracias

Por Daniel Jelin Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 2 nov 2014, 12h59

Desde a vitória nas urnas, a presidente Dilma Rousseff já apareceu cinco vezes na TV tartamudeando que “diálogo” será o mote deste seu segundo mandato. Foi o que tentou fixar no palanque do PT, domingo à noite, e nas entrevistas a emissoras de televisão nos dias seguintes. As palavras ensaiadas – “união”, “abertura”, “parceria”, “pontes” etc. – afetavam humildade e moderação. Na tela da TV, no entanto, o sinal pareceu inverter-se, traindo empáfia e descomedimento. Já no discurso de vitória, Dilma bronqueou com a plateia, porque se impacientou com a algazarra e a voz lhe sumia. Tolerou, contudo, imprecações contra a imprensa… No dia seguinte, em sua primeira entrevista ao vivo, irritou-se com perguntas sobre o cenário econômico, gracejou da jornalista da TV Record e insistiu nas meias-verdades e falsificações do marketing de campanha – é sintomático que, nesses momentos, tenha se sentido tentada a falar para as câmeras, sorrindo, como se gravasse o horário eleitoral. A certa altura, instada a falar às dezenas de milhões de eleitores de seu adversário, o tucano Aécio Neves, atribuiu a vitória do PSDB em São Paulo à desinformação e recomendou que lhe perguntassem sobre sua expressiva votação no Nordeste. E antes de qualquer chance de “diálogo” ou “união”, mostrou-se determinada a impor a agenda da “reforma política por meio da consulta popular”, tema especialmente desagregador, como se viu em 2013 e, tudo indica, se verá novamente em 2015.

Nem “coração valente”, nem “paz e amor”: comedimento é o traço chave das democracias. Inversamente, o vício do descomedimento – ou o que os gregos chamavam húbris – é o que engendra o que o historiador, sociólogo e crítico literário búlgaro Tzvetan Todorov chamou de Os Inimigos Íntimos da Democracia (Companhia das Letras, 216 páginas). “O povo, a liberdade, o progresso são elementos constitutivos da democracia”, escreve Todorov, “mas se um deles se emancipa de suas relações com os outros, escapando assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo.” O site de VEJA conversou com Todorov às vésperas da eleição mais disputada e menos “comedida” da história brasileira, que acabou premiando uma campanha disposta a “fazer o diabo” para vencer. O historiador observa que a maioria das modernas democracias abriga de fato um eleitorado profundamente dividido. “As disputas são geralmente vencidas por 51% contra 49%”, disse, profeticamente – Dilma cravaria exatos 51,64%, contra 48,36% de Aécio. “Mas é importante que os eleitos mostrem que são os governantes do país inteiro. Os bons líderes protegem a oposição também.”

Nascido em 1939, Todorov deixou a Bulgária comunista em 1963 para se fixar na França. A jornada através da Cortina de Ferro acabaria moldando seu destino acadêmico. Embora tenha apetite por assuntos os mais diversos, dedica à democracia especial atenção – e aos perigos que a espreitam, mais ainda. Esses “inimigos íntimos” já haviam se insinuado no pungente Memória do Mal, Tentação do Bem (Arx, 384 páginas), uma espécie de autópsia dos regimes liberticidas em que se intercalam pequenas biografias de homens e mulheres que sofreram na carne a tragédia do nazismo ou do comunismo. Para o historiador, o totalitarismo é uma ameaça “externa” à democracia e já foi definitivamente varrida do Ocidente. Já as ameaças “internas”, essas ainda assombram. “A democracia produz, nela mesma, forças que a ameaçam, e a novidade de nossos tempos é que essas forças são superiores àquelas que a atacam de fora”, escreve. “Combatê-las e neutralizá-las é tanto mais difícil quanto mais elas invocam o espírito democrático e possuem, assim, as aparências da legitimidade.” Em entrevista ao site de VEJA, Todorov analisa o combate a essas ameaças, comenta a mais “descomedida” disputa eleitoral da história do Brasil e ressalta a importância da crítica para a saúde das democracias.

A campanha eleitoral de 2014 no Brasil foi a mais agressiva e disputada da história do país. Esse acirramento dos ânimos deve ser vistos como um risco ou, ao contrário, como ingrediente natural do regime democrático? A maior parte das democracias contemporâneas conhece essa divisão profunda. Direita e esquerda (e outros grupos) têm forças equivalentes, e as disputas são geralmente vencidas por 51% contra 49%. Mas é importante que os eleitos mostrem que são os governantes do país inteiro e se preocupam com os interesses de todos, não apenas com o seu eleitorado. Os bons líderes protegem a oposição também.

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Dos “inimigos íntimos da democracia” que o senhor identifica, o populismo tem sido a principal armadilha política no Brasil e em vizinhos latino-americanos. Como proteger a democracia dos populistas? De fato, acho que o populismo tem desempenhado um grande papel na história recente dos países da América Latina, da Argentina à Venezuela. Uma maneira de se proteger dele é estabelecer limites aos poderes, instituições independentes, uma Justiça que não esteja a serviço do governo, comissões de notáveis. Os direitos da oposição devem ser garantidos pela Constituição, e a crítica deve ser protegida. Para tanto, a liberdade de imprensa também desempenha um papel vital.

Que países o senhor acredita que estão fazendo os maiores avanços para aperfeiçoar a democracia? A democracia nunca é perfeita, é um processo que recomeça todos os dias. Se olharmos para a história recente do mundo, os países da Europa Oriental, Sudeste Asiático, América Latina têm feito progressos significativos nesse sentido, livrando-se de regimes ditatoriais, totalitários ou militares. A África do Sul aboliu o apartheid. Já nos países onde a democracia está mais estabelecida, é possível notar alguma degradação. Por exemplo, nos Estados Unidos, a tortura foi legalizada por algum tempo (no interrogatório de suspeitos de terrorismo), um retrocesso evidente em termos de democracia. Há também as ações menos dramáticas: a Suprema Corte americana permitiu recentemente que corporações financiem candidatos a cargos eletivos, uma intromissão indesejada da economia na política. E neste momento, um tratado de livre comércio em discussão entre os países da América do Norte e da União Europeia (a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento) submeteria a ação dos Estados à esfera privada das cortes de arbitragem. Infelizmente, não é fácil aprender com o erro dos outros: temos a autoestima muito elevada.

Ao condenar o messianismo político, o senhor critica uma série de intervenções militares e a tentativa de impor a democracia por meio de bombas. Que opinião tem do combate ao Estado Islâmico? A situação no Oriente Médio tornou-se tão complexa, que as intervenções podem facilmente produzir efeitos perversos. De que lado está o Ocidente no conflito entre sunitas e xiitas? Na guerra civil na Síria, as potências ocidentais estiveram do lado da Arábia Saudita, que financia radicais muçulmanos. Quando esses radicais se tornaram uma ameaça, uma aproximação com o Irã se tornou desejável para Ocidente. Curdos entraram em confronto com fundamentalistas árabes sunitas, mas são considerados terroristas pela Turquia, que é, no entanto, membro da Otan. Por conseguinte, é preciso cautela. Você não vai resolver profundos e múltiplos conflitos com intervenções militares precipitadas.

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Em 2012, quando o livro foi publicado, a primavera árabe e o movimento dos “indignados” ainda estavam em curso. O senhor então lançou sobre eles um olhar esperançoso. Passados dois anos, que opinião faz destes acontecimentos? Os ‘indignados’ expressaram sua insatisfação com os partidos políticos tradicionais. Os manifestantes não reconheciam essas forças institucionalizadas. Isso parece saudável, desejável. Mas os partidos continuam a dominar a vida política do país, de forma que estes movimentos populares não produziram muitos resultados. É uma contradição estrutural, no momento insuperável. A “Primavera Árabe” revelou aspirações democráticas das pessoas, mas novamente faltou organização política necessária para promover mudanças mais profundas. Continuo a acreditar que estes movimentos são importantes e que seus efeitos continuarão a ser sentidos nos próximos anos.

Ao criticar o ultraliberalismo, outro “inimigo íntimo” identificado em seu livro, o senhor condena a “tirania do indivíduo”. Na democracia brasileira, contudo, a hipertrofia parece ser a do estado, não do indivíduo. A democracia requer equilíbrio entre forças antagônicas, neste caso entre a preocupação com o bem comum e a proteção das liberdades individuais. Essa tensão é inerente ao sistema democrático. A política não deve dominar a economia – esta foi a infeliz experiência de países comunistas na Europa Oriental, mas, por outro lado, as forças econômicas também não devem ditar a política do país. Se o estado está hipertrofiado, então é esse poder que deve ser limitado – mas não tenho conhecimento para julgar essa questão a respeito do Brasil.

Tendo identificado os “inimigos íntimos da democracia”, acredita que eles estão sendo bem combatidos? Vê razões para otimismo? Não. Os inimigos são muito poderosos e estão indo bem, então também não mudo o meu diagnóstico…

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O senhor faz uma crítica arrasadora do comunismo em ‘Memória do Mal, Tentação do Bem’ e ao mesmo tempo censura de modo bastante dura e original o liberalismo, enxergando neste a imagem invertida daquele: se um extremo é “liberticida”, o outro seria “sociocida”. Como o senhor se define politicamente? Direita ou esquerda? Progressista ou conservador? Como historiador e ensaísta, eu me sinto alheio a essas classificações, o que permite que eu continue crítico em relação a diferentes partidos ou tendências – e veja também seus pontos positivos. Meu compromisso é com o regime democrático e me amparo no pensamento iluminista e nas tradições humanistas.

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