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Uma geração sem infância

A cúpula do EI foi derrotada. Fica a questão: o que fazer com as estrangeiras que aderiram ao grupo terrorista e, sobretudo, com os filhos e órfãos delas

Por Thais Navarro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 12 jul 2019, 14h51 - Publicado em 17 Maio 2019, 07h00

A londrina Shamima Begum, filha de imigrantes de Bangladesh, tinha 15 anos quando, em 2015, deixou a Inglaterra com duas amigas para se juntar ao “califado” instaurado pelo Estado Islâmico (EI) em uma vasta área na fronteira entre Síria e Iraque. Não foram as únicas: no apogeu do território de ficção criado pelo EI, aproveitando um naco de terra de ninguém produzido pela guerra civil síria e ampliado sem muito esforço, cerca de 50 000 estrangeiros aderiram ao chamado para se juntar aos extremistas. Quatro anos depois, o “califado” virou pó e milhares de refugiados definham em campos de tendas montadas pela ONU. Um dos maiores, o de Al-Hol, no deserto sírio e controlado por tropas curdas, abrigou Shamima, agora com 19 anos, três filhos mortos antes dos 2 anos — o terceiro nasceu no campo e se foi com três semanas — e separada do marido, o jihadista holandês Yago Riedijk. Ela quer voltar para Londres. O Ministério do Interior britânico, que anulou seu passaporte, não autoriza. “A prioridade é a segurança e proteção do Reino Unido”, alegou um porta-voz.

No mesmo campo de Al-Hol encontra-se Hoda Muthana, nascida no Estado americano de Nova Jersey, de pais iemenitas. Em novembro de 2014, com 20 anos, Hoda trocou casa e família pelas promessas do EI. Lá se casou três vezes (a cada marido que morria em combate seguia-se outro) e teve um filho, hoje com 1 ano e meio. Hoda também quer voltar, e também teve o pedido recusado pelas autoridades americanas. “Terei de viver com a minha decisão de adolescente, tola e precipitada, pelo resto da vida”, queixou-se em uma entrevista. Shamima e Hoda fazem parte de um grupo de cerca de 9 000 mulheres e crianças estrangeiras, só no campo de Al-Hol, que não têm pátria nem destino. Doutrinadas durante anos por terroristas fanáticos, as chamadas noivas do Estado Islâmico são vistas agora com extrema desconfiança em seu país de origem. Mesmo as crianças, sobretudo as mais velhas, estão sob suspeita. Em seu apogeu, o “califado” divulgou diversos vídeos em que meninos carregavam rifles quase do seu tamanho, praticavam tiro e até participavam das macabras decapitações que fizeram a tenebrosa fama do EI.

Em Al-Hol, as crianças são 65% da população total. Entre elas, 5 000 são órfãs — mais da metade, de pais estrangeiros. Vivendo em situação precária, em meio à sujeira e à escassez de remédios e comida saudável, 30% das que têm menos de 5 anos sofrem de desnutrição aguda. O êxodo para os campos de refugiados se intensificou no início do ano, quando o “califado” se resumia a uma única cidade, Baghouz, na Síria (desde então também liberada). Àquela altura, Baghouz era bombardeada dia e noite pela aviação americana e, em terra, pelo Exército de Defesa Sírio, força de ataque formada por curdos — minoria ativa na região — com assessoria militar dos Estados Unidos. Em dezembro, o campo abrigava cerca de 9 700 pessoas. Atualmente, acolhe sete vezes mais — inchou tanto que um segundo campo, Al-Aaresha, teve de ser instalado.

A inglesa Shamima transferiu-se recentemente para esse segundo campo, devido a ameaças de morte que afirma estar recebendo desde que virou uma espécie de celebridade entre as estrangeiras. Ela foi localizada em fevereiro, meio por acaso, por uma equipe do jornal inglês The Times entre as mulheres cobertas de preto (rosto inclusive) que vivem separadas das que nasceram na região. Na primeira entrevista, tirou o véu e declarou, calmamente, que não se arrependia de nada, que a vida sob o EI era “normal”, que a primeira cabeça decapitada que viu “não causou reação” e que um ataque atribuído ao grupo durante um show em Manchester, com 22 mortos, tinha sido um ato de “vingança”. Desde então, mudou o discurso, se diz vítima de “lavagem cerebral” — o mesmo argumento da americana Hoda, que, diferentemente dela, declarou-se arrependida no primeiro instante. Outra equipe de repórteres, do The New York Times, visitou Al-Hol e encontrou entre as estrangeiras bastante remorso, mas muita convicção também. “Não quero criar meus filhos em uma sociedade totalmente corrupta, que estimula todos os pecados”, disse uma alemã que não quis se identificar, segurando um bebê no colo e com uma menininha loira agarrada a suas pernas.

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SUPERLOTAÇÃO - Campo sírio de Al-Hol: espremidos em tendas, 30% dos menores de 5 anos estão desnutridos (Ali Hashisho/Reuters)

Produtos desse meio, as crianças vivem no limbo, sem nacionalidade, sem escola e sem futuro. Muitas não conheceram a vida sem guerra e privações. “São meninas e meninos traumatizados”, diz James Marten, autor do livro Children and War: a Historical Anthology (Crianças e Guerra: uma Antologia Histórica, sem tradução para o português). “Elas passaram pelos mesmos perigos que os adultos, foram expostas a bombardeios e mortes.” As consequências desse tipo de trauma costumam ser aumento da frequência de pesadelos, automutilação, tentativa de suicídio, uso de drogas e desenvolvimento de comportamento agressivo. De acordo com um relatório da ONG Save the Children, dois terços das crianças criadas sob a tutela do EI disseram já ter perdido um familiar; metade dos adolescentes passou a usar drogas para lidar com o stress. Entre os pais, 80% relataram mostras de agressividade por parte dos filhos. “Quanto mais tempo essas crianças permanecerem nos campos de refugiados, mais afetadas serão”, alerta Anne Speckhard, diretora do Centro Internacional de Estudo de Violência Extremista.

Poucos países se dispuseram até agora a receber mães e filhos de volta. Kosovo, país muçulmano encravado nos Bálcãs, é o mais benevolente: repatriou 74 crianças e 32 mulheres, e, desde fevereiro deste ano, Rússia, França, Marrocos, Alemanha, Arábia Saudita e Cazaquistão também autorizaram cidadãs a regressar com seus filhos. “Muitos países têm receio de que, na volta, as crianças resolvam seguir os passos dos pais e aderir ao EI”, diz Anne. “O problema é que essa visão abrange os novinhos, de menos de 5 anos, que dificilmente representam um perigo para a sociedade.” A questão está longe de ter solução. “Não há legislação internacional para repatriar os menores e está na mão de cada país decidir o que fazer”, diz Corinne Zoli, diretora do Instituto de Segurança Nacional e Contraterrorismo da Universidade de Syracuse, em Nova York.

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Além dos pequeninos apátridas, os campos de refugiados acolhem outros 2 000 menores sem pai nem mãe de diferentes origens: crianças separadas dos pais considerados perigosos por sua relação com o grupo terrorista, filhos das mulheres da minoria Yazidi que militantes do EI expulsaram de suas casas e transformaram em escravas sexuais e garotos e garotas que simplesmente moravam nas cidades ocupadas pelo Estado Islâmico e perderam a família no regime de terror implantado. Ao lado desse drama desencadeado pela insanidade dos extremistas islâmicos, os sírios tentam se reerguer após oito anos de uma guerra civil que, segundo cálculos de vários organizações, matou mais de 200 000 civis, sendo 20 000 deles crianças.

Em abrigos improvisados, ao som do bombardeio constante, vendo a morte de perto, pequenos sírios e sírias experimentaram a angústia que Bana Al-Abed, aos 9 anos, postou na forma de diário no Twitter — um cotidiano de violência que marcará a vida de toda uma geração que não teve infância.

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Publicado em VEJA de 22 de maio de 2019, edição nº 2635

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