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Quando a ‘selfie’ perde a graça (e termina até em tragédia)

A busca pela foto perfeita tem levado pessoas a praticar atos sem noção e a correr risco de vida

Por Caio Mattos
Atualizado em 6 dez 2019, 11h16 - Publicado em 6 dez 2019, 06h00

A atração humana por lugares sombrios, associados a morte e tragédia, arrasta multidões a praças marcadas por execuções públicas, prisões e cemitérios desde os primórdios da história. A esse tipo de visitação se dá o nome de dark tourism (turismo escuro, em tradução livre), termo cunhado na década de 90 por pesquisadores que se propuseram a investigar a essência da curiosidade mórbida. Pois ele ganhou novos contornos nos instagramáveis dias de hoje, uma era em que impera o vale-tudo por qualquer imagem de impacto nas redes. Em um caso recente, Chernobyl, a usina da Ucrânia que protagonizou em 1986 o maior acidente nuclear de todos os tempos, esteve no centro de uma polêmica que cutuca um vespeiro ético muito atual. Romarias de turistas baixaram em Pripyat, cidade-­sede da usina, e posaram à vontade para selfies com largos sorrisos no rosto. Uma moça chegou a eternizar (e postar, como não?) uma imagem dela seminua tendo a área abandonada como cenário. O criador da série Chernobyl, Craig Mazin, que pôs o assunto de volta à roda, usou o Twitter para pedir: “Comportem-se com respeito por todos que sofreram e morreram ali”.

O dark tourism encontra sua face mais obscura justamente quando esbarra na cultura das selfies, objeto de teses acadêmicas que dissecam as raízes da compulsão pelo clique e um de seus indesejáveis subprodutos: a falta de noção. No mundo pré-internet da década de 50, o pensador alemão Günther Anders já detectava o fenômeno que batizou de “iconomania” — a obsessão pelo registro de tudo em imagens, empobrecendo a experiência real. “O turista visita uma cidade nova, mas, quando está lá, para vivenciar corporalmente a cena, não lhe interessa nada disso; ele está lá somente para fotografá-la”, diz o pesquisador Ciro Marcondes Filho, da USP. As redes deram ao hábito uma roupagem superlativa, segundo observou a VEJA a psicóloga Tamara Makana, da Universidade de Syracuse, nos Estados Unidos. “Há uma crescente pressão social para publicar fotos que se destaquem”, diz ela, e arremata: “O cérebro entende a curtida como uma recompensa, o que faz o corpo liberar dopamina, substância viciante associada ao prazer. Nesse ciclo, certas considerações acabam ignoradas”.

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E assim as pessoas vão cedendo a impulsos que podem ganhar as redes por motivos nada edificantes, como a profusão de autorretratos em frente ao campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, a despeito de ali ter sido o palco de um capítulo tenebroso. Houve tantos casos de gente que tirou selfies sorridentes em frente àquelas cercas ou brincou de se equilibrar nos trilhos por onde passavam trens lotados de judeus (mais tarde exterminados) que a administração decidiu soltar um comunicado: “Quando vier a Auschwitz, lembre-se de que está em um lugar onde mais de 1 milhão de pessoas foram mortas”. A propósito, a Amazon foi puxada para o centro do debate depois que a direção do Memorial de Auschwitz manifestou descontentamento com a venda de enfeites de Natal adornados com fotos do campo — logo retirados da vitrine virtual.

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Às vezes, os sem-noção veem adormecer, inclusive, o instinto mais básico de sobrevivência. Um exemplo disso é o vaivém de turistas na icônica ponte Long Biên, obra de arquitetos franceses inaugurada em Hanói, no Vietnã, em 1903. Inspiração para músicos e poetas, a estrutura que corta o Rio Vermelho teria tudo para ser instagramável, não fosse um detalhe: trens ainda correm por aqueles trilhos, impondo perigo diário a quem vive de selfie em selfie. Cientes do risco, autoridades fecharam um trecho, mas o enxame de curiosos carregados de câmeras e celulares encontrou uma brecha em outra banda da Long Biên e segue arriscando a vida. A tentação da imagem única tem levado à morte pessoas que se distraem à beira de cachoeiras e precipícios. Nesta temporada, muita gente sem preparo ficou estacionada na chamada “zona da morte” do Everest, no Nepal, à espera da chance de alcançar o topo da montanha mais alta do planeta e dar aquele clique. Onze pessoas morreram. Moral da história: nem tudo pode estar no foco da selfie.

Publicado em VEJA de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664

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