Cartões-postais nevados, monumentos muito bem preservados, abundância de parques e uma variedade de preparo de arenques compõem a parte mais visível da prosperidade na Suécia, a banda do planeta onde, depois da Segunda Guerra, se consolidou a social-democracia tal qual a conhecemos. O país havia ficado fora do conflito e, nos anos 1950, impulsionado pelo fornecimento de produtos para uma Europa em reconstrução, pôs em andamento uma profunda reforma, com a ideia de alcançar uma distribuição mais ampla da riqueza. Sob a moldura de um globo rachado, os suecos pavimentaram uma via alternativa ao comunismo e ao capitalismo reinantes, com o Estado oferecendo serviços essenciais de alto nível — educação, saúde, transporte — em troca de elevados tributos. Mas até os suecos, orgulhosos do modelo exportado, vivem seus sacolejos, como o declive econômico dos anos 1990, provocado pela explosão de uma bolha imobiliária.
Mais recentemente, veio a pandemia, seguida da guerra na Ucrânia, e de novo a nação escandinava sente um acentuado baque, tendo de aliviar os impostos que incidem sobre o bolso dos cidadãos. Nesse contexto é que entra em cena uma estratégia inédita — o governo, atualmente nas mãos de uma coalizão de direita, decidiu apostar em um ambiente favorável à permanência e à atração dos bilionários de outras partes. O objetivo é que eles ajudem a manter girando a roda do bem-estar social, depositando vultosas somas em negócios que acabam por favorecer a população.
A tática pode soar arriscada. Afinal, vai na contramão de países europeus, como a vizinha Noruega (que recém subiu o imposto sobre grandes fortunas), e dá as costas à discussão sobre tributação aos super-ricos planeta afora, na qual está envolvido o G20, sob a liderança do Brasil. Já a Suécia congelou quase todas as taxas de tal natureza e foi além: baixou de forma considerável os tributos recolhidos dos empresários, um processo gradativo cujo último ato foi um corte relevante meses atrás. “Isso só é possível porque a renda do conjunto da população já alcançou um alto patamar e o colchão social está bem estabelecido”, pondera Jesper Roine, professor da Escola Superior de Economia de Estocolmo.
O mais recente levantamento dos bilionários da Forbes traz o retrato acabado da atual política sueca. São hoje 542 os integrantes desse rol no país (em coroas suecas, a moeda local). Em dólares, representam o equivalente a quatro indivíduos a cada 1 000 000 de habitantes — o dobro da proporção nos Estados Unidos. Juntos, eles detêm algo como 70% do PIB, o que naturalmente desemboca no aumento da desigualdade, que atingiu o cume em quatro décadas. Ainda assim, a nação segue como uma das mais igualitárias do mundo e, segundo analistas, vem se beneficiando da presença de ricaços como Stefan Persson (16,6 bilhões de dólares), acionista majoritário da varejista de moda H&M, e a dupla Martin Lorentzon (6,5 bilhões) e Daniel Ek (4,6 bilhões), os fundadores do Spotify, uma das marcas globais que germinaram em solo sueco. Em 2023, essa turma apostou pesado em startups voltadas para a área social, sendo decisiva para que 74% dos investimentos de capital de risco tomassem o rumo desejado pelo governo.
A atmosfera para os negócios é fator essencial para que os muito ricos não queiram deixar aquelas gélidas terras. Nos anos 1990, a Suécia se antecipou ao dedicar generosos aportes à internet de alta qualidade, o que fomentou uma efervescente indústria na área da tecnologia, de onde emergiram gigantes como Skype e o próprio Spotify. Nas últimas duas décadas, a capital, Estocolmo, apelidada (guardadas as proporções) de Vale do Silício europeu, viu brotar dezenas de unicórnios, empresas avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares. O convidativo ambiente para empreender conta ainda com uma acentuada cultura de colaboração entre startups e com o fato de o país ser pequeno e avançado, o que o torna um bom laboratório para testar inovações. Também a concentração de cérebros sopra a favor. “O que se observa ali é um ciclo virtuoso que desperta o interesse de quem quer investir”, afirma o economista Fredrik Andersson, da Universidade Lund.
Nestes tempos de mais aridez na economia, a inflação bateu os 12% em um ano, castigando setores como o imobiliário, onde os preços cravam recordes. A criminalidade na nação historicamente pacífica é outro desses sinais que incomodam. Tais fatores, aliados ao enrosco da imigração, que escalou por toda a Europa e que também a Suécia, sempre receptiva, não sabe como equacionar, abriram espaço para a ascensão da extrema direita, pela primeira vez integrante da coalizão no poder. Eles seguem, porém, ostentando marcas invejáveis: 77% da população adulta têm bons empregos, a expectativa de vida é de 82 anos e 91% manifestam um forte senso de comunidade, medidor da OCDE (o clube das nações mais desenvolvidas) que ajuda a entender a mecânica do país que agora reinventa a social-democracia. À moda sueca, claro.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893