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O que há por trás dos protestos de agricultores na Europa

Puxados pelos franceses, eles fecham ruas e estradas contra seus altos custos — um terreno fértil para a pregação da extrema direita

Por Ernesto Neves 10 fev 2024, 08h00

Há mais de um milênio, em um mês de janeiro, uma gigantesca armada viking, composta de mais de 100 barcos, subiu o Rio Sena para realizar o que entrou para a história como o Cerco de Paris. O então vilarejo do reino da Frância Ocidental passou semanas sitiado até ser finalmente invadido e saqueado pelos nórdicos durante a Páscoa. Agora, em 2024, igualmente em janeiro, estendendo-se pelo mês seguinte, a cidade voltou a ser alvo de um cerco — desta vez, por tratores conduzidos por agricultores da própria França. Enfurecidos com a piora de sua situação financeira e social, eles bloquearam oito autoestradas responsáveis por conectar a capital francesa ao restante do país e, munidos de tendas, mantimentos e banheiros químicos, criaram um mega-­acampamento distante apenas 30 quilômetros da celebrada e chique avenida dos Champs-Élysées.

O governo francês apressou-se a fazer concessões e a mobilização foi temporariamente suspensa, mas antes disso se espalhou pela União Europeia (UE), promovendo chuva de ovos e alimentando quebra-quebra e fogueiras em frente ao Parlamento Europeu em Bruxelas, na Bélgica, e travando estradas na Itália, Espanha, Holanda, Grécia, Polônia, Romênia e Alemanha. As raízes da revolta são antigas e foram se avolumando com o tempo. A persistente alta da inflação pós-pandemia tem levado os governantes a cortar subsídios, entre eles o do óleo diesel, crucial para o campo. Os mecanismos para garantir o equilíbrio de preços dos produtos agrícolas, que já estavam defasados, se desestruturaram com a entrada de importações de fora da UE, sobretudo da Ucrânia.

Grande produtor de cereais, o país de Volodymyr Zelensky ficou impedido pelo bloqueio naval russo imposto por Putin de suprir seus mercados habituais no Oriente Médio e África, e passou a escoar sua produção pelo Danúbio, a preços baixos. Nessa conta se destaca ainda a perspectiva de se assinar o encalacrado acordo comercial com o Mercosul, que, na visão dos agricultores, abriria o bloco a mais importações baratas.

INSATISFAÇÃO - Protesto em frente ao Parlamento Europeu: o movimento dos tratores se espalha pela UE
INSATISFAÇÃO - Protesto em frente ao Parlamento Europeu: o movimento dos tratores se espalha pela UE (Cyril Marcilhacy/Bloomberg/Getty Images)

Até a causa verde é responsabilizada pela turma dos tratores. A introdução de novas regras ambientais, mudanças que a UE julga necessárias para enfrentar a crise climática, eleva os custos da atividade agropecuária — caso da exigência de conter as emissões de metano no gado leiteiro, que reduziria pela metade o rebanho, da obrigatoriedade de destinar 4% das terras à preservação de florestas e da redução drástica no uso de pesticidas. “Os agricultores são duplamente pressionados. De um lado pelo clima, cada vez mais hostil, e de outro pelos altos custos da transição ecológica”, afirma François Purseigle, professor de agronomia do Instituto Nacional Politécnico de Toulouse.

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Além de interromper o trânsito e abalar a cadeia de suprimentos, a insatisfação no campo tem um pé na política: ela ocorre justamente na área rural, ressentida com o que vê como seu abandono pela elite, um celeiro de eleitores particularmente fértil para os partidos populistas de direita, como o Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, na França, e o Alternativa para a Alemanha. Preocupados com o estrago que a bandeira agrária pode causar em eleições próximas, como a do Parlamento Europeu em junho, os governos recuam. Para amansar os “agricultores em fúria”, como foi batizado o protesto francês, o novo primeiro-ministro Gabriel Attal prometeu manter o subsídio ao diesel e flexibilizar as regras ambientais, enquanto o presidente Emmanuel Macron afirmava de novo, com todas as letras, que o acordo UE-Mercosul, como está, não será aprovado. “A raiva dos agricultores cristaliza o ressentimento de boa parte da população com os problemas econômicos”, resume Kevin Cunningham, cientista político da Universidade Tecnológica de Dublin, na Irlanda.

O declínio da agricultura europeia — por muitos séculos a força que moveu a Europa — é sintoma da perda de relevância do continente diante de seus rivais na geopolítica, sobretudo China e Estados Unidos. A participação da União Europeia no PIB global caiu um terço desde 1995 e os países-membros sofrem com o atraso em inovação e tecnologia. A produção de alimentos estagnou: os 9 milhões de agricultores dos 27 países do bloco movimentam apenas 1,4% do PIB da UE e especialistas duvidam que a planejada injeção de 307 bilhões de euros no setor até 2027 consiga reverter um quadro que tem raízes estruturais, fincadas em fazendas familiares carentes de profissionalização. Para piorar, 33% dos produtores têm mais de 65 anos de idade e, entre os jovens, há pouco ou nenhum interesse pela cansativa vida na lavoura. Nesse contexto, o cerco dos tratores, por mais impactantes que sejam as imagens que produz, dificilmente colherá frutos duradouros.

Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879

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