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Em crise, Macron apresenta reforma previdenciária ao Parlamento francês

Objetivo do governo é unificar todos os 42 regimes previdenciários em um 'sistema universal', baseado em pontos por hora de trabalho

Por Caio Mattos Atualizado em 30 jul 2020, 19h29 - Publicado em 17 fev 2020, 07h00

O presidente da França, Emmanuel Macron, apresenta nesta segunda-feira, 17, sua proposta de reforma previdenciária para ser debatida entre os deputados da Assembleia Nacional. O projeto tem sido rechaçado por centenas de milhares de manifestantes por todo o país em mais de dois meses de protestos e greves que paralisaram o transporte público e a coleta de lixo.

Ao final de nove dias para debate e proposição de emendas, o projeto deve ser votado pelo plenário até 3 de março, como planeja o République en Marche (REM), partido de Macron. A matéria ainda será avaliada pelo Senado, provavelmente até o final de março, e passará por uma votação final até meados de junho.

A coalizão parlamentar comandada pelo REM, que conta com outras legendas, comanda a Assembleia Nacional com 300 dos 577 assentos da casa. Mesmo assim, a legenda de Macron enfrenta oposição para aprovar a reforma no Parlamento, em especial do La France Insoumise (LFI), grupo de esquerda liderado pelo deputado Jean-Luc Mélenchon.

Embora o LFI conte com apenas 17 deputados, o grupo já propôs mais de 19.000 emendas à reforma com o objetivo de obstruí-la durante o período de avaliação em comissão especial, entre 3 e 12 de fevereiro.

Sobrecarregada com mais de 22.000 emendas, a comissão enviou o projeto original ao plenário, sem propostas de alteração, pela primeira vez na história, segundo o jornal francês Le Monde.

Como afirmou o deputado Éric Coquerel, do LFI, o objetivo da oposição, que pretende repetir a estratégia no período de debate, é adiar a primeira votação para depois das eleições municipais, a serem realizadas em 15 e 22 de março ou forçar o governo a recorrer a uma aprovação por cima do Parlamento.

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De acordo com o artigo 49 da Constituição francesa, de 1958, o governo tem o direito de aprovar uma lei sem precisar de debate ou votação pelo Parlamento desde que não sofra oposição de pelo menos 289 deputados. Polêmico pelo seu caráter anti-democrático, o recurso foi acionado mais de 85 vezes até 2019. 

Líder do REM na Assembleia, a deputada Marie Lebec, afirmou que a situação “não considera” adotar o artigo 49, visto que “mataria o debate”. Mas, como reporta o jornal francês Le Monde, membros do REM já avisaram “não ter problema” em recorrer à medida, que desgastaria ainda mais o frágil governo de Macron.

Greve geral

Enquanto a Assembleia Nacional começa a debater a reforma, a estatal responsável pela gestão das ferrovias no país, a Sociedade Nacional dos Trilhos de Ferro (SNCF), organiza uma greve contra a proposta de Macron. A paralisação deve durar apenas por esta segunda-feira e envolve também a gestora do metrô de Paris, a Empresa Pública Autônoma dos Transportes Parisienses (RATP).

Trens estacionados em estação em Nice durante greve geral na França: sem transporte – 05/12/2019 (Eric Gaillard/Reuters)

A SNCF estava em processo de normalização das suas atividades após 48 dias paralisada. A greve, que atingiu seu auge entre 5 de dezembro e 23 de janeiro, é a maior da estatal ferroviária desde 1968.

Segundo estimativa da SNCF e da RATP, o Estado deve ter perdido pelo menos 960 milhões de euros (4,5 bilhões de reais) com a greve nas ferrovias e 144 milhões de euros (670 milhões de reais) com as paralisações do metrô parisiense até o final de janeiro.  

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Outro setor de serviço básico, a coleta de lixo está em greve desde 23 de janeiro na capital francesa. Três incineradores responsáveis por coletar 6.000 toneladas de lixo por dia de 6 milhões de pessoas em Paris e na região metropolitana estão parados. Os detritos se espalham pela cidade, atraindo ratos e afastando turistas.

Pelo menos 80.000 toneladas de resíduos foram enterradas como alternativa aos incineradores nas primeiras duas semanas. “Isso é metade do volume que enterramos anualmente”, disseram autoridades da Syctom, estatal responsável pela coleta de lixo na região, ao jornal Le Parisien.

Diversas outras classes, de professores a médicos, aderiram ao chamado por uma “greve geral” em 5 de dezembro. Naquele mês, o setor privado nas grandes cidades, como Paris e Marseille, foi muito impactado. De acordo com pesquisa da associação de classe Grupo Nacional de Empresas Independentes de Hotéis e Restaurantes, o mercado de vestimentas e o setor hoteleiro caíram em 30% e até 40%, respectivamente, em dezembro. Os restaurantes sofreram uma queda de 50% no mês. 

Protestos nas ruas

Nove mobilizações nacionais foram convocadas pela Confederação Geral do Trabalho (CGT) — a maior união trabalhista do funcionalismo público francês e a imagem dos protestos contra a reforma —, em parceria principalmente com outras quatro associações de classe. A décima está marcada para esta quinta-feira, 20.

A última onda de protestos, realizada em 6 de fevereiro, mobilizou apenas 121.000 pessoas, dentre elas 15.000 em Paris, segundo o Ministério do Interior francês. O número não chega a 15% dos 805.000 manifestantes da primeira passeata, em 5 de dezembro.

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Manifestação contra a reforma da Previdência em Paris durante greve nacional – 05/12/2019 (Alain JOCARD/AFP)

De fato, o final de 2019 foi mais impactado pelos protestos. Cerca de 340.000 manifestantes se mobilizaram pelo país em 10 dezembro. Sete dias depois, o total presente nas passeatas subiu para 615.000. Além das mobilizações convocadas pela CGT, um protesto organizado pela categoria dos bombeiros em 28 de janeiro repercutiu na imprensa internacional — mesmo que envolvesse apenas cerca de 300 manifestantes — devido aos confrontos com a polícia.

Maquiados como o personagem Coringa, dos quadrinhos e filmes Batman, os bombeiros encerraram os oito meses de greve naquele mesmo dia, após o governo corrigir o adicional periculosidade para 25% do salário, como demandavam. O benefício estava estagnado em 19% desde 1990. Mas a manutenção de sua aposentadoria prematura, aos 57 anos, outra demanda da classe, não foi concedida.

Bombeiros contrários à reforma e ciosos de suas condições de trabalho enfrentam a polícia em Paris — 28/01/2020 (Charles Platiau/Reuters)

Os 42 regimes

Há 42 regimes de aposentadoria distintos na França — quase 10 vezes o número de regimes distintos no Brasil antes da reforma previdenciária de 2019. Dentre os mais de 17 milhões de franceses aposentados, que superam 25% da população total no país, cerca de 82% recebem pensão do regime geral, segundo o governo francês. 

Mais de 10% dos pensionistas restantes contam com regimes previdenciário autônomos, como pilotos e comissários de bordo. Além disso, mais de 5% recebem conforme os 11 regimes especiais, que envolvem parte do funcionalismo público, como a SNCF, e outros setores, como as indústrias de eletricidade e gás. 

Os “regimes especiais” costumam conceder aposentadorias prematuras. Com base em dados do Ministério de Assuntos Sociais e Saúde, quase 90% dos funcionários da SNCF que se aposentaram em 2017 tinham menos de 60 anos de idade no regime geral, a cifra foi inferior a 1%. 

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Assim como em muitos dos países onde essa reforma entrou em pauta, como o Brasil, as mudanças se devem ao custo elevado do sistema de aposentadoria e sua tendência de escalonar ainda mais ao longo do tempo. Além do impacto nas contas públicas e no endividamento, a sobrevivência do sistema é posta em xeque pelo aumento da população idosa e a taxa de natalidade mais baixa.

O déficit nas aposentadorias da SNCF alcança mais de 3 bilhões de euros (13 bilhões de reais) por ano. Ao todo, a França gastou 14% de seu PIB em aposentadorias em 2015, quase o dobro da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os franceses ficaram atrás apenas das perdulárias Itália e da Grécia, dentre os países do bloco.

O sistema de pontos

O objetivo do governo é unificar todos os 42 regimes previdenciários em um “sistema universal”. O primeiro-ministro francês, Édouard Philippe, disse no início de dezembro que a reforma conduziria ao “fim dos regimes especiais [e autônomos] progressivamente”.

As aposentadorias do novo sistema, segundo Philippe, seriam contabilizadas em “pontos” por hora de trabalho, no lugar da contribuição trimestral em vigor. 

O primeiro-ministro francês, Edouard Philippe, revela os detalhes do plano de reforma das pensões ao Conselho Econômico, Social e Ambiental, em Paris — 11/12/2019 (Thomas Samson/ Pool/Reuters)

Macron se inspira em uma corrente de pensamento em ascensão na França desde o início dos anos 2000 e inspirada por um filósofo francês do século XIX, Pierre Leroux, afirma Jean-Louis Clément, historiador do instituto Sciences-Po Strasbourg, em entrevista a VEJA.

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Clément explica que “Leroux considerava que tudo é legítimo em uma sociedade desde que nada se torne ‘casta’, seja propriedade, família ou trabalho”. Com o sistema de pontos, Macron pretende “destruir os fundos de pensão de ‘castas’ [regimes especiais e autônomos] para formar um único esquema”, acredita o historiador.

Uma das principais críticas ao projeto, como lembrou a VEJA o especialista em administração da Grenoble École de Management, Yannick Chatelain, é que não havia nenhuma contabilização financeira sobre o custo para implementar a reforma quando a proposta foi primeiro apresentada pelo então secretário de Aposentadorias, Jean-Paul Delevoye, em julho de 2019. 

Delevoye, suspeito de conflitos de interesse com o setor da previdência privada, se demitiu do cargo em dezembro. 

A ‘desidratação’ 

O Estado já deve perder bilhões de euros em concessões aos manifestantes. O plano original previa economizar 12 bilhões de euros até 2027 devido à regra da “idade crítica” – os descontos sobre as pensões daqueles nascidos depois de 1975 e que se aposentassem antes de  62 anos, em 2022. Esse piso subiria progressivamente até 64 anos em 2027. 

Em 11 de janeiro, Philippe anunciou que a “idade crítica” seria temporariamente descartada, mas lançou um ultimato às organizações trabalhistas. Governo e sindicatos, em constantes reuniões desde 30 de janeiro, têm até o final de abril para encontrar outro meio de economizar os 12 bilhões de euros até 2027. Senão, segundo o premiê, o governo adotará por decreto as “medidas necessárias” para alcançar a meta.

“Quero ser perfeitamente claro sobre este ponto: Eu assumirei minhas responsabilidades”, concluiu Philippe.

Dentre outras concessões, estão a manutenção do regime autônomo de pilotos e comissários de bordo e a aposentadoria prematura de caminhoneiros, aos 57 anos. O governo ofereceu abono até aos dançarinos da Ópera de Paris, que estão em greve desde o início de dezembro, mas eles recusaram a oferta. 

“Essas reformas previdenciárias começam com um projeto ambicioso de unificação geral, mas depois se abrem exceções às categorias mais organizadas na negociação política, como foi o caso dos trabalhadores rurais no Brasil”, diz o economista Fabio Giambiagi, do Instituto Millenium. 

Ao final da reforma brasileira, apenas o Regime Próprio de Previdência Social, que envolve a maioria dos servidores públicos, foi suprimido dentre os quatro regimes bancados pelo poder público.

‘República exemplar’ 

Macron não enfrenta uma reação popular contrária a seu governo nas ruas desde o aumento no preço da gasolina e do diesel na bomba anunciados no final de 2018, desencadeando o ruidoso e muitas vezes violento movimento dos coletes amarelos. 

Manifestantes vestindo coletes amarelos, símbolo do protesto de motoristas franceses contra a alta nos preços dos combustíveis, ocupam a Champs-Élysée, em Paris – 24/11/2018 (Benoit Tessier/Reuters)

Mais de 280.000 pessoas se manifestaram por toda França em 17 de novembro de 2018, no primeiro e maior “sábado amarelo”, como foram chamados os atos do grupo.

Em dezembro, apenas 23% dos franceses “confiavam” em Macron — o pior valor registrado durante todo seu mandato, nove pontos percentuais abaixo de janeiro de 2020 —, segundo pesquisa do jornal Les EchosChatelain explica que “Macron não é reconhecido por muitos como um líder crível, pois ele prometeu uma ‘república exemplar’ e nova, mas manteve as práticas da velha política”. 

Dentre os primeiros erros cometidos pelo presidente, Chatelain ressalta o Caso Benalla. Em julho de 2018, o jornal Le Monde revelou que um segurança do gabinete de Macron, Alexandre Benalla, se disfarçou como um policial e agrediu um manifestante durante protesto em maio. 

O escândalo resultou na maior queda de “confiança” em Macron em um mês, de seis pontos porcentuais. O presidente nunca mais chegou a ter a “confiança” que sustentava antes do escândalo, de 40% dos franceses.

À PAISANA – À esquerda, Alexandre Benalla, como funcionário de gabinete de Macron; à direita, Benalla aplica uma gravata em manifestante. (Charly Triballeau/AFP/Reprodução)

O modelo alemão

Chatelain acredita que o “não gerenciamento” da crise é a mensagem que a situação política francesa passa à Europa sobre Macron, comprometendo sua imagem como líder da União Europeia.

“Eu não sei se ele pode manter uma liderança comparável à da chanceler alemã Angela Merkel”, afirmou, referindo-se à principal figura política do bloco europeu na última década. 

Sem a “cultura de revolucionários da França”, como diz Chatelain, a Alemanha, que gastava mais de 10% de seu PIB em aposentadorias em 2015, conduziu de fato mais tranquilamente sua última reforma previdenciária, em 2016. 

O governo de Merkel prevê o aumento gradual da idade mínima de aposentadoria para 67 anos até 2029, embora a expectativa de vida alemã seja pouco superior a 80 anos de idade, dois anos a menos que a francesa. 

A Alemanha ainda impôs uma taxa de contribuição única a 18,8% — Macron planeja uma contribuição de 28,8%. 

Considerado na Europa como um “modelo” em reforma previdenciária, a Suécia estabeleceu, a partir de 1994, um regime ajustado pela economia do país. Assim, sob o sistema sueco, as pensões sofrem cortes durante crises, como aconteceu em 2010, 2011 e 2014. 

Segundo a OCDE, os aposentados na Suécia recebem em média 53% de seu salário no final da carreira; há 20 anos, a cifra era de 60%.

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