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Dormentes ao luar: os trens noturnos renascem na Europa

Eles vinham desaparecendo com os voos baratos e a expansão das locomotivas diurnas de alta velocidade

Por Tássia Kastner, de Berlim
21 abr 2024, 08h00

Em agosto de 2019, a ativista Greta Thunberg, então uma adolescente de 16 anos, trocou o avião por um veleiro para cruzar o Atlântico e participar de uma conferência da ONU, em Nova York. O gesto da jovem sueca foi a bandeira de um movimento que ganhava força na Europa — o flight shame, ou vergonha de voar, dado o consumo de combustível. A demanda urgente de uma geração preocupada com as mudanças climáticas era a faísca de renascimento de um antigo hábito europeu, o de trens noturnos de longa distância, eternizados pelo luxo cinematográfico de locomotivas como o Expresso do Oriente, que ligava Paris a Istambul. Elas foram sumindo, com o passar do tempo, aposentadas pela ascensão das empresas aéreas de baixo custo e dos trens de alta velocidade, quase sempre diurnos.

COOPERATIVA - Elmer van Buuren, da European Sleeper: sonho já antigo
COOPERATIVA - Elmer van Buuren, da European Sleeper: sonho já antigo (John Akerman Ozguc/Divulgação)

Dá-se, agora, uma interessante retomada. A empresa estatal austríaca ÖBB opera 21 rotas que ligam, primordialmente, Alemanha, Áustria, Suíça e Itália, além de extensões que alcançam as capitais Amsterdã, Bruxelas, Paris e Praga. Os percursos ultrapassam as doze horas sob os trilhos. Apenas em 2023, foram 1,5 milhão de passageiros nas linhas da companhia. O ressurgimento do mercado foi acompanhado de um investimento de 730 milhões de euros, dinheiro usado para a compra de 33 veículos modernos e com mais vagões-­cama. Dois dos novos trens estão em operação e os demais serão entregues gradualmente até 2026. Os passageiros de dormentes ao luar preferem, óbvio, dormir durante o trajeto. Existem bilhetes para todos os bolsos: uma cama em uma cabine exclusiva, com banheiro e chuveiro, chega a custar quase 500 euros para o trecho entre Berlim e Paris, com conforto comparável ao da primeira classe dos aviões. Quem viaja sentado desembolsa a partir de 50 euros. O grande chamariz, porém, são as novas cabines-cápsula, que lembram os abrigos japoneses, com preço intermediário, na faixa 130 euros por trajeto. Elas devem substituir os couchettes, espécie de beliches dobráveis mais simples e mofadas.

Os trens saem praticamente lotados, mas, ainda assim, não é uma operação rentável. Ela depende de subsídios públicos. Só para a rota entre Berlim e Paris, foram 10 milhões de euros do governo francês. “Não dá para ficar rico com trem noturno”, disse à VEJA Bernhard Rieder, porta-­voz da ÖBB. É uma fatia ainda pequena, mas com força de crescimento — e charme indizível, pronta para atrair novos investidores. É o caso do holandês Elmer van Buuren, que sonhava em ter a própria empresa de trens por 25 anos. Em 2021, ele fundou a European Sleeper, uma cooperativa financiada com um equity crowd­funding, em que investidores ganharam ações da empresa em troca do investimento. Foram captados 5 milhões de euros para o aluguel de um trem que percorre trilhos entre Praga e Bruxelas, com paradas em Berlim e Amsterdã. A operação começou há um ano e já transportou 45 000 passageiros. Antes de expandir as rotas, a companhia deve levantar outros recursos para reformar os vagões antigos. “Por ora, não é ainda a maneira mais luxuosa de viajar, mas você dorme e não percebe o tempo passar”, disse Van Buuren a VEJA.

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ADEUS, COUCHETTES - A discrição das “cabines-cápsula”: estilo japonês
ADEUS, COUCHETTES - A discrição das “cabines-cápsula”: estilo japonês (Harald Eisenberger/obb/Divulgação)

As travessias noturnas, lembre-se, não garantem uma noite de sono. A reportagem de VEJA fez a viagem Berlim-Paris, com a ÖBB, e os percalços começaram já no embarque. A reserva era para um couchette, mas, quando o comboio chegou, havia apenas poltronas. Um funcionário da ÖBB tentava acalmar os passageiros, afirmando que o carro original estava com problemas e teve de ser substituído por um de categoria inferior.

Houve mais dor de cabeça: às 2 da manhã, o trem parou, para então soar o alarme de incêndio. Dali, foram mais duas horas de manobras, sem que a viagem prosseguisse. A parada estava prevista porque serve para separar vagões que seguem destinos diferentes — parte iria para Paris, outra para Bruxelas —, mas quem acordou achou ser um problema técnico. “O alarme soa, às vezes, quando não deve”, disse um funcionário que preferiu não se identificar.

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SAUDADE - O luxo do Expresso do Oriente: tempos que não voltam mais
SAUDADE - O luxo do Expresso do Oriente: tempos que não voltam mais (SSPL/Getty Images)

Não à toa, os passageiros ficaram surpresos quando o trem chegou no horário previsto em Paris, após quinze horas de jornada debaixo de estrelas. É mais tempo do que uma pessoa leva dentro de um avião entre São Paulo e Paris. Já o trecho entre Berlim e Paris levaria uma hora e meia de voo, a preços que podem ser de 50 euros, apenas, mas, a título de justiça, inclua na conta uma hora para chegar até o aeroporto, as duas horas de antecedência antes do embarque e o tempo de deslocamento após a aterrissagem. Chega-se, assim, a uma travessia de cinco horas e meia. As dez horas de diferença ficam para adormecer, se der, e para sacramentar a convicção de que, no trem, você está fazendo sua parte para salvar o planeta, como intuiu a irrequieta Greta.

Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889

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