A paisagem caribenha de Barbados foi o cenário de um aguardado encontro que juntou à mesa integrantes do governo e da oposição da Venezuela, sob a mediação da Noruega, que ali se debruçaram sobre um tópico que põe o mundo democrático em alerta: haverá eleições livres e limpas na nação há mais de duas décadas nas mãos de um regime que vem se apossando das instituições, pilotado primeiro por Hugo Chávez (1954-2013) e hoje por seu sucessor, Nicolás Maduro? A julgar pelas costuras daquela reunião de outubro, emoldurada por um mar de raro turquesa, eram altas as chances de que Maduro ao menos garantisse o pleito em 2024, sobre o qual deixava pairar dúvidas. E assim foi: a data ficou marcada para 28 de julho, e os Estados Unidos logo relaxaram uma fatia das sanções que atingiam em cheio o setor de petróleo, onde pulsa a economia venezuelana.
Mas não demorou, e o governante exibiu suas garras colocando em marcha medidas que deixam claro seu roteiro para esticar a estada no Palácio Miraflores — um enredo que desmantela candidaturas capazes de lhe fazer frente e atrai a população com uma mescla de assistencialismo e jogos de cena, tudo sob o verniz de uma suposta democracia. Uma contundente imagem desse ímpeto autoritário é a cédula eleitoral, divulgada na terça-feira 9. A regra criada pelo Conselho Nacional Eleitoral, terreno em que o chavismo impera, estabelece que o espaço de cada candidato é definido com base no desempenho dos partidos nas eleições legislativas. Resultado: o nome de Maduro aparece nada menos do que treze vezes — contra três do governador Manuel Rosales, da oposição.
Pouco antes, no dia 3, Maduro havia promulgado uma lei estapafúrdia, que anexa o território de Essequibo, região rica em petróleo que pertence à Guiana e que ele resolveu reivindicar, calcado num plebiscito no qual a população (com comparecimento abaixo do esperado) votou a favor. Ao retomar uma pendenga que se arrasta desde 1880, o venezuelano não parece querer, ao menos por ora, invadir militarmente o vizinho, mas, sim, acender um sentimento nacionalista que pode reverter em seu favor. “Embora a crise fabricada por Maduro não tenha mobilizado tanta gente, ele segue batendo o tambor nacionalista e sugando o oxigênio da oposição”, afirma o cientista político Christopher Hernandez-Roy, do Center for Strategic and International Studies.
Neste sensível ponto, as manobras para eliminar qualquer sombra de risco em seu percurso rumo ao terceiro mandato têm sido incisivas e fatais à oposição. A Venezuela acumula um vasto histórico de pleitos em que a banda antigoverno perde forças ao se pulverizar por completo. Agora, porém, tudo conduzia a um nome único e com gás para enfrentar Maduro — María Corina Machado, 56 anos, vencedora das primárias e favorita nas pesquisas. Mas eis que o governo a inabilitou por quinze anos, elencando motivos pífios. “Foi uma decisão arbitrária. Eles controlam todos os órgãos públicos”, disparou a VEJA Corina, que escalou para seu lugar na corrida a xará Corina Yoris, uma professora universitária que não se registrou a tempo em razão de uma providencial trava no sistema. Por enquanto, o nome no páreo é o de Manuel Rosales, que o regime de Maduro considera mais palatável justamente por não representar perigo. Até 20 de abril, pode haver ainda uma troca de candidato — a ver que solução se apresentará. “As eleições na Venezuela são apenas uma forma de Maduro se manter no poder sob a aura de uma democracia funcional que não existe”, diz Benigno Alarcón, diretor do Centro de Estudos Políticos da Universidade Andrés Bello, em Caracas.
O absurdo conjunto de movimentos que faz tremular os pilares democráticos obrigou certos líderes a vir pela primeira vez aos holofotes. No Brasil, o presidente Lula, que mantinha o silêncio em torno da retirada de María Corina do pleito, resolveu se posicionar quando sua substituta, a outra Corina, esbarrou no mesmo paredão. “É grave que a candidata não possa se registrar”, disse Lula, que caminha sobre uma delicada corda bamba. Nos bastidores do Itamaraty, os mais chegados ao círculo presidencial contam que o chefe está ciente da necessidade de ir gradativamente elevando o tom, mas quer reforçar o diálogo — uma questão existencial que tende a levar a um morde e assopra. Até o presidente colombiano, Gustavo Petro, sempre condescendente com Maduro, falou sobre o episódio das duas Corinas: “Foi um golpe antidemocrático”, criticou. Já os Estados Unidos restabeleceram algumas daquelas sanções retiradas de cena no encontro do Caribe.
Atolada em índices socioeconômicos sofríveis, com 52% da população engolida pela pobreza, a Venezuela vem até apresentando sinais de melhora, resultado de mudanças implantadas por Maduro quando a crise alcançou patamar insustentável. Uma decisão foi ceder espaço à iniciativa privada, que vem ocupando áreas onde o governo não tem mais fôlego para estar. Ainda sob os ventos de Barbados, houve uma abertura a petroleiras americanas e estrangeiras, o que começa a dar frutos no dilapidado setor que já fez da Venezuela “a Arábia Saudita da América Latina”. “O problema é que a imensa maioria ainda está às voltas com o desafio de ter uma renda digna”, destaca um relatório da Universidade Andrés Bello. Para tentar suavizar a aridez de uma economia castigada, o governo recorre à tática de tantos outros populistas — 80% dos cidadãos recebem hoje benefícios sociais. E assim, de truque em truque, Maduro vai se eternizando no poder.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888