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Artigo: A maldição do petróleo

O desmantelamento da indústria petrolífera venezuelana promovido pelo chavismo levou ao brusco empobrecimento da população do país

Por José Toro Hardy*
Atualizado em 13 nov 2020, 09h15 - Publicado em 13 nov 2020, 06h00

O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que o Produto Interno Bruto da Venezuela deva recuar 25% em 2020. Em apenas sete anos, o PIB caiu 88,9%, passando de 438,3 bilhões de dólares em 2013 para 48,6 bilhões em 2020. O PIB per capita, que já foi o mais alto da América Latina, agora é o mais baixo da região, à frente apenas do Haiti. Em grande parte, esse empobrecimento é o resultado da destruição do setor petroleiro durante os anos de uma revolução, que se estende de 1999 a 2020.

Há pouco mais de vinte anos, a Venezuela produzia 3,3 milhões de barris de petróleo por dia. Na época, estava em andamento um processo de abertura do mercado de petróleo, em condições legais previamente estabelecidas pela Suprema Corte venezuelana e em bases de negociação aprovadas pelo Congresso do país. A partir daí, foi iniciado um amplo processo licitatório para atrair os investimentos para que as metas de produção planejadas pudessem ser alcançadas e superadas. Ao todo, era previsto um investimento em torno de 65 bilhões de dólares e, com isso, a PDVSA tornou-se a segunda maior empresa de petróleo do mundo, depois da Saudi Aramco, da Arábia Saudita. Se esses projetos tivessem sido concluídos, a produção petrolífera da Venezuela deveria superar atualmente os 5,5 milhões de barris produzidos por dia. Porém, segundo dados da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), o volume atual é de 390 000 barris diários.

Durante sua campanha eleitoral de 1998, Hugo Chávez se opunha de forma tenaz ao processo de abertura da indústria petrolífera. Ao vencer as eleições, fez tudo que estava a seu alcance para que a Suprema Corte de Justiça anulasse o que havia sido alcançado. Como não teve êxito, tomou outros caminhos que levaram a um confronto crescente com os trabalhadores da PDVSA. A partir dessas tensões, houve uma greve desses funcionários — que o próprio Chávez confessou ter causado. O resultado foi a demissão de 20 000 trabalhadores da empresa entre 2002 e 2003. Essas pessoas tinham em média quinze anos de atuação no setor e, juntas, acumulavam 300 000 anos de conhecimento, que foram jogados na lata de lixo.

Após o episódio, a produção do país caiu — de 3,3 milhões de barris, em 1999, para uma média de 2,6 milhões, em 2008. Entretanto, a conjuntura internacional fez com que o preço do petróleo subisse de maneira exorbitante, compensando essa perda. O valor do petróleo bruto exportado pela Venezuela passou de cerca de 13 dólares para 114 dólares o barril. Assim, mesmo com a menor produção, a receita cresceu significativamente, levando a alguns anos de fartura. Lamentavelmente, em vez de aproveitar os recursos extraordinários para promover uma solução sustentável dos problemas econômicos e sociais, o governo priorizou seus objetivos políticos. Programas de distribuição de renda que ultrapassavam a capacidade do país foram engendrados, ao mesmo tempo em que a Venezuela se endividava significativamente no exterior. Houve, no período, a violação da Constituição ao obrigar que o Banco Central financiasse o crescente déficit fiscal por meio de enormes emissões de dinheiro. Tudo isso desencadeou um processo inflacionário de consequências devastadoras.

As elevadas receitas do petróleo se mantiveram até 2008, quando o governo alterou as condições tributárias para a indústria petroleira. O imposto de renda subiu de 35% para 50%, os royalties, de 16,66 % para 30%, e a participação do Estado em empresas mistas, em até 60%. Tais condições não foram razoáveis quando o preço do petróleo passou a cair fortemente nos mercados internacionais. O resultado foi uma paralisia do investimento, que levou a uma queda acentuada e progressiva dos níveis de produção. Em meados de 2019, já eram 650 000 barris diários. Além das questões políticas, passaram a pesar os efeitos das sanções dos Estados Unidos, acentuando a queda para os 390 000, em setembro deste ano.

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A deterioração da indústria foi devastadora para a economia do país. A Venezuela é um país petroleiro, altamente dependente da receita da commodity — basicamente uma combinação de quanto petróleo é produzido e a que preço é vendido. À queda acentuada do nível de produção, já mencionada, soma-se a baixa dos preços. O governo não revela mais a qual preço se vende o petróleo venezuelano. De fato, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Diosdado Cabello, disse que desde outubro do ano passado o país não recebe receitas “formais” do petróleo.

Os números frios, embora impressionantes, não expressam a magnitude da tragédia do povo venezuelano

Simultaneamente, ocorre a paralisação progressiva das refinarias venezuelanas, afetadas pela falta de manutenção e investimentos. A capacidade de refino nas seis unidades do país, que atingiu 1,3 milhão de barris por dia em 1999, caiu mais de 90%. Assim, não é possível suprir a demanda interna de gasolina. O resultado disso é que os venezuelanos precisam fazer longas filas, que chegam até mesmo a durar dias, para conseguir o combustível.

A PDVSA tenta reativar algumas de suas refinarias que estão paralisadas há anos. Por não ter mais pessoal suficientemente treinado para realizar essas operações, nem peças de reposição necessárias, a empresa tem enfrentado sérios problemas. A devastação da indústria do petróleo durante a revolução, assim como a de todos os setores da economia, levou a um repentino empobrecimento da população. De acordo com a Pesquisa de Condições de Vida das Famílias (Encovi), realizada por três das universidades mais prestigiadas do país, atualmente 96,2% das famílias venezuelanas vivem abaixo da linha da pobreza em termos de renda. Dessas pessoas, quase 80% estão em condições de extrema pobreza.

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Esse é também o resultado da combinação entre a queda brutal do PIB, a hiperinflação e uma taxa de desemprego em torno de 55%. Os números frios, embora impressionantes, não expressam a magnitude da tragédia do povo venezuelano, medida na escala que realmente vale: o sofrimento das pessoas. Foi esse sofrimento que levou mais de 5 milhões de venezuelanos a deixar o país, buscando em outras terras o que a sua própria lhes negou.

Como bem definiu Alejandro Werner, diretor para Hemisfério Ocidental do FMI, em relatório apresentado em abril de 2020, a Venezuela não vive apenas uma década perdida, mas sim um retrocesso gigantesco: “O que aconteceu na Venezuela é um desastre macroeconômico e social que nunca se viu na região”.

* José Toro Hardy, venezuelano, é economista, professor universitário e foi diretor da PDVSA entre 1996 e 1999

Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713

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