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Sobremesas retrô trazem o doce gosto da nostalgia

Elas voltam aos cardápios, reavivando memórias de sabores e aromas que aguçam os paladares e tocam a alma

Por Simone Blanes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
16 jan 2022, 08h00
VOVÓ FAZIA - Pudim de leite (no topo) e, no sentido horário, pavê, arroz-doce com canela em pau como enfeite, manjar e bolo felpudo em papel de alumínio: as incertezas despertadas pela pandemia levaram muita gente a procurar conforto no consumo de pratos associados a lembranças da infância -
VOVÓ FAZIA - Pudim de leite (no topo) e, no sentido horário, pavê, arroz-doce com canela em pau como enfeite, manjar e bolo felpudo em papel de alumínio: as incertezas despertadas pela pandemia levaram muita gente a procurar conforto no consumo de pratos associados a lembranças da infância – (iStock/Getty Images; Alex Silva; iStock/Getty Images; iStock/Getty Images; Rodolfo Regini/Divulgação)

O pudim lisinho se desmanchando na boca, os sabores cruzados do pavê, o cheiro gostoso da canela subindo da tigela de arroz-doce, a calda grossa de ameixa se misturando ao manjar e a alegria de abrir o papel de alumínio para encontrar lá dentro o molhadinho do bolo felpudo. Cada uma dessas sensações está na memória da maioria dos brasileiros que hoje tem 40, 50, 60 anos de idade. É só fechar os olhos para voltar à infância e ver-se novamente inundado pelo sentimento de que nada poderia transmitir mais acolhimento e segurança do que saborear aquelas sobremesas junto da família ou dos amigos. É natural, portanto, que em tempos tão confusos quanto os atuais muita gente recorra à doce nostalgia dessas delícias do passado para encontrar uma referência de paz.

Os sabores retrô, como são chamadas as receitas do gênero, estão entre as principais tendências do ano, como atesta o levantamento divulgado pela Kerry, gigante multinacional da área de nutrição e uma das mais respeitadas na difícil arte de prever o que estará em nossas mesas no futuro. A companhia os inclui entre as macrotendências em alimentos para 2022 e justifica a escolha com um argumento bem simples. “Os consumidores estão gravitando em direção a comidas e bebidas de conforto”, diz Leigh-Anne Vaughan, diretora global de marketing estratégico da empresa. A combinação do estresse no trabalho (leia mais na pág. 62) com conflitos na família agravada por dificuldades financeiras é, infelizmente, salvo momentos de exceção, a tônica de parte do mundo desde a crise financeira de 2008. E então veio a pandemia.

Em dezembro de 2020, no fim do primeiro ano sob o domínio do vírus, uma pesquisa feita pelo Conselho Internacional de Informações sobre Alimentos, nos Estados Unidos, sinalizou que nada menos do que 25% dos americanos haviam relatado ter ingerido quantidade muito maior de comidas associadas a sentimentos de conforto. Embora dissessem respeito aos hábitos alimentares nos Estados Unidos, as conclusões eram facilmente estendidas a outras populações. No Brasil, a procura por um pouco de alívio por meio do consumo de sobremesas com cheiro e sabor de casa se refletiu em mudanças nos cardápios dos restaurantes, que passaram a incluir opções antes escanteadas, como os doces de abóbora e de banana. Os índices das ferramentas de busca na internet também refletem o fenômeno. Em 2021, entre as dez receitas mais pesquisadas no Google pelos brasileiros, oito eram de doces bem ao estilo “vovó fazia”: brownie de Nescau, bolinho de chuva, bolo de milho, bolo de cenoura, geleia de amora, bolo de caneca, arroz-doce e curau. “Esse movimento tem muito a ver com a memória afetiva”, diz a chef Carole Crema, especializada em doces caseiros e tradicionais. “A comida em si já proporciona isso. Porém, os doces são mais associados a momentos especiais porque remetem a bons tempos, datas marcantes e pessoas queridas”, completa. Em suas criações, Carole faz questão de preservar as receitas que mexem também com o coração. “Muita gente que come meus doces os compara aos que comia na infância, como o brigadeiro de colher”, diz. As lembranças, no Brasil, de fato, têm gosto para lá de açucarado. O brasileiro médio ama doces carregados de açúcar, uma de nossas heranças dos tempos de Colônia, quando o ingrediente farto vindo dos engenhos de cana-de-açúcar se misturou às frutas nas compotas e às massas e recheios dos bolos portugueses. Desde então, os doces são parte relevante da identidade nacional e da história individual de cada um. São como as madeleines de Proust, evocação da meninice.

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Essa espécie de memória coletiva ajuda a embalar a saudade dos doces que nos fazem voltar para casa quando o mundo parece estar sem direção. O problema é como fazê-los. Primeiro, porque são poucos os que tiveram o privilégio de aprender com pais ou avós os segredos de um bom glacê ou o ponto certo do sagu. Depois, porque nos falta um ingrediente indispensável: tempo. “Para fazer um doce bem-feito, é preciso ter paciência e precisão porque tem medida certa e receita certa”, ensina a confeiteira Pati Piva. Mas não custa tentar, de preferência sem muita elaboração, aconselha Carole Crema. “Não precisa inventar. Ninguém quer algo tão gourmetizado”, diz. De fato, há coisa pior do que esperar um bolinho de chuva salpicado com açúcar e canela quentinho e receber no lugar uma iguaria parecida com massa de panqueca recheada com espuma de amêndoas? Não se trata de desvalorizar a segunda, que pode até ser saborosa, mas quando se quer o sabor do doce que toca a alma, bem lá no fundo, fala-se de açúcar e canela. Não de amêndoas.

Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772

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