A algazarra da torcida e dos jogadores do Marrocos: incômodo para a Europa
No fim das contas, nas quartas só sobraram os europeus de sempre, além de Brasil e Argentina. Com a exceção dos africanos do norte
DOHA – Deu a impressão, na fase de grupos, de haver no Catar camelos vestidos como zebras. Houve a vitória da Arábia Saudita contra a Argentina. As duas vitórias do Japão contra Alemanha e Espanha. O Brasil perdeu para Camarões e Portugal para a Coreia do Sul. Foi só o susto inicial. Entre as oito seleções das quartas sobraram os grandões de sempre, menos os alemães, com uma geração novata e perdida, e os espanhóis. A saber: Brasil, Croácia, Inglaterra, França, Argentina, Holanda e Portugal. Apenas os portugueses nunca chegaram ao menos a uma final de Copa. E então, como convidado especial, especialíssimo, despontou o Marrocos, ao despachar a Espanha nos pênaltis, depois do 0 a 0 nos 90 minutos e na prorrogação. A linda exceção marroquina – e que festa fizeram no Education City – confirma uma regra: na hora H, só os adultos chegam lá.
O domínio impõe uma reflexão: o que será da Copa de 2026, a ser realizada em três países simultaneamente (Estados Unidos, México e Canadá) com 48 – 48! – equipes? O início terá cara de amistoso, até que os favoritos despontem como sempre. O jornal francês L’Équipe fez uma boa metáfora. As quartas são como aquele acampamento ao pé do Everest, já com alguma altitude, mas nada tão grave, embora muitos desistam por causa do ar rarefeito. A partir das quartas o jogo é outro: o pico do Everest se avizinha – e adeus, oxigênio!
Muito se falou, com insistência, da decadência das seleções europeias. Não é assim, apesar da decepção da Alemanha e, agora, da Espanha, ainda que a Copa tenha tudo para ficar nas mãos de Brasil ou Argentina, que se encontrariam em eventual semifinal. Dado o desenho da tabela, é certo que poderá haver um finalista europeu (entre Inglaterra, França e Portugal, se o Marrocos deixar, claro). Um dos sul-americanos pode estar lá – mas, quem sabe, Croácia ou Holanda.
Um outro modo de enxergar a presença europeia é medir as seleções pelos clubes que jogam – e mesmo os brasileiros estão no topo dos maiores do mundo porque atuam na Europa. Façamos, portanto, um ranking de clubes. Quais deles têm mais representantes nas quartas de final? Os dois ingleses, o Manchester City e o Manchester United, têm 12. PSG, Bayern de Munique, Real Madrid e Ajax, 7. O Marrocos tem 18 dos 26 jogadores em times europeus. O goleirão Yassine Bounou, o herói dos pênaltis, é do Sevilla – e sabe-se lá como será recebido ao voltar para casa.
Daria uma bela Copa do Mundo um torneio entre times europeus. Ah, mas já existe – é a Champions League. Não por acaso, a Fifa não larga uma ideia absurda que alimenta há um bom tempo, porque representaria dinheiro no bolso: a realização da Copa a cada dois anos.
As torcidas dos clubes quase sempre são mais emotivas e mercuriais do que as de seleções. As crianças de todo o planeta vestem camisas de times, muito mais do que a de seleções. Durante a Copa, o papo é outro, ainda que no Catar apenas os hinchas argentinos e especialmente os de países próximos ao Catar, de cultura semelhante e religião aparentada, desfilaram com calor e animação incontidas, em algazarra permanente. A palavra algazarra, aliás, de origem árabe, se referia inicialmente à gritaria ou alarido dos mouros quando iniciavam um combate.
A festa da torcida do Marrocos, que lotou o Education City na vitória contra a Espanha, foi bonita. Só dava eles – talvez porque não tenham um clube para o qual possam destinar seus sonhos de título. Fica-se, então, com o país. Pouco importa, para o torcedor, que catorze dos 26 convocados tenham nascido em outros países. “São todos marroquinos, mesmo que tivessem nascido em Marte”, diz o engenheiro Rachid M’Hamdi, que foi a Doha com a mulher e dois filhos. Mas é sempre bom lembrar o desaforado e perspicaz aforismo do escritor e pensador britânico Samuel Johnson (1709-1784), que vale para a vida e pode valer para o futebol: “O patriotismo é o último refúgio do canalha”. O Souk Waqif não dormirá, porque o Marrocos chegou lá, o quarto africano a alcançar as quartas de uma Copa do Mundo, depois de Camarões (1990), Senegal (2002) e Gana (2010). O Estreito de Gibraltar vai se estreitando, os futebolistas marroquinos foram para lá de Marrakesh, mas a Europa ainda manda na bola, porque é mais rica. Simples assim.
E cabe uma nota irônica final: o lateral-direito Achraf Hakimi, o último a bater, nasceu em Madri. Formou-se pelo Real Madrid antes de ganhar projeção e chegar ao Paris Saint-Germain. Assim é o mundo hoje, no vaivém por uma vida decente, que o futebol ilumina e amplia. Os torcedores marroquinos – entre eles, 30.000 que trabalham no Catar – não parecem dispostos a dormir, na madrugada histórica da noite em que venceram a Espanha. Agora é Portugal.