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Em novo livro, Ruy Castro apresenta um painel dos loucos anos cariocas

Jornalista retrata a efervescência das artes e da cultura popular no Rio de Janeiro da década de 20 em 'Metrópole à Beira-Mar'

Por Julio Cesar de Barros
Atualizado em 10 dez 2019, 10h58 - Publicado em 6 dez 2019, 06h00

O jornalista Ruy Castro nasceu em 1948 em Caratinga, na Zona da Mata mineira. Como muitos naturais daquelas terras, acabou sendo atraído pelo canto da sereia e mudou-se para o litoral na década de 60, convertendo-se num dos mais ilustres cariocas contemporâneos. Seu encantamento com o Rio, sua cultura, seu modo de vida e seus habitantes, ilustres ou não, está presente em sua obra. Ótimo biógrafo, narrou em livros a saga de nosso dramaturgo maior, Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico, 1992), e do mago das pernas tortas, Mané Garrincha (Estrela Solitária, 1995). Seu amor à terra de Noel legou a todos os brasileiros crônicas deliciosas da cidade e de seus artistas em Chega de Saudade (1990), sobre a bossa nova, e Ela É Carioca (1999), na qual nos mostra como Ipanema influenciou o comportamento não só dos fluminenses, mas do país todo.

A nova empreitada de Castro é Metrópole à Beira-Mar — O Rio Moderno dos Anos 20, que cobre uma época turbulenta, porém muito criativa, da velha capital federal. Partindo da modestíssima participação do Brasil na I Guerra Mundial, Castro tem fôlego para encarar o período que vai da devastação provocada pela gripe espanhola à chegada ao Rio dos gaúchos, na Revolução de 30, com Getúlio à frente da Aliança Nacional Libertadora, sepultando a República Velha. A gripe passou como um furacão pela cidade, não poupou ricos nem pobres. Famílias inteiras foram dizimadas, e não poucas figuras notáveis viram a sombra da morte cruzar a soleira da porta de seus palacetes, assim como fazia nos barracos das encostas descuidadas. O ano de 1918 chegou ao fim com a paz selada na Europa e o Rio vencendo a tormenta da gripe, incinerando seus mortos, mas já se planejando para o recomeço em grande estilo. No Carnaval de 1919, a epidemia virou marchinha numa folia inesquecível: “Na Quarta-Feira de Cinzas, o Rio despertou convicto de que vivera o maior Carnaval de sua história”, diz Castro. A cidade recuperada se preparava para grandes momentos.

METRÓPOLE, À BEIRA-MAR, de Ruy Castro (Companhia das Letras; 498 páginas; 79,90 reais) (./.)

O que viria pela frente não poderia ser pouco. O Rio cosmopolita destoava do restante do país, ainda muito provinciano. Era a capital federal, que encantava os visitantes com modernidades, recantos belíssimos e uma vida cultural comparável à dos grandes centros da época no exterior. Cultura, diversão e boemia atraíam gente de toda parte. A cidade reunia poetas e romancistas, músicos como Villa-Lobos, jornalistas e artistas iniciantes como Di Cavalcanti, embora ainda fosse um luxo desfilar pela Rua do Ouvidor, no Centro, onde o comércio tinha a oferecer as novidades vindas da Europa e a gente graúda exibia sua elegância e proeminência. “Era a cidade que todos os brasileiros sonhavam conhecer. Os que a visitavam e, semanas depois, voltavam para os seus burgos contavam emocionados como tinham viajado de bonde ao lado de Olavo Bilac”, escreve Castro.

As ideias pululavam quando, em 1922, essa inquietação se traduziu na eclosão do modernismo, na fundação do Partido Comunista do Brasil e na Revolta dos 18 do Forte, inaugurando o ciclo tenentista, que culminaria na Revolução de 30. Os modernistas, com Mario de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira e outros à frente, desafiavam o establishment literário ao confrontar a já tradicional Academia Brasileira de Letras, com Graça Aranha denunciando o passadismo predominante nas artes brasileiras. Jovens como Olegário Mariano e Álvaro Moreyra, cultos e viajados, levavam a modernidade às páginas dos jornais e revistas ilustrados por caricaturistas debochados e de traços frescos — entre eles K.Lixto, J. Carlos e Alvarus.

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ESTILISTA – O autor: mineiro que virou um filho adotado (Guillermo Giansanti/.)

Desfilam pelas quase 500 páginas do livro, no estilo claro e elegante do autor, as figuras que compuseram um amplo painel na vida cultural do país a partir da Cidade Maravilhosa. Gente como o escritor Lima Barreto, morto mal entrada a década, de quem Castro destaca o talento, a personalidade contraditória e atormentada, as idiossincrasias e os preconceitos. O poeta Murilo Mendes, a cantora lírica Bidu Sayão, o chorão Pixinguinha, o pintor Ismael Nery, o crítico literário Agripino Grieco e toda a fauna artística e intelectual da época dividem espaço com remanescentes da velha aristocracia órfã do Império, a elite republicana da nova ordem já carcomida e figuras populares, numa promiscuidade saudável e até então tímida no Brasil do século XX.

É por meio de figuras da sociedade, anfitriãs discretas, literatos de alto coturno e suas obras que a história do período vai sendo contada. Criaturas conspícuas como João Paulo Emílio Christovam dos Santos Coelho Barreto, ou simplesmente o João do Rio, jornalista, escritor e figura obrigatória em reuniões das melhores casas, mas que também podia ser encontrado adentrando os morros ou se perdendo pelos subúrbios. “Subiu às favelas, varejou o universo dos cortiços, penetrou nos covis de ópio, visitou presídios e foi apresentado aos ritos satânicos” — assim descreve Castro a vida do controverso autor, dramaturgo, cronista, romancista e tradutor cujo funeral fechou o pequeno comércio dos portugueses, que o veneravam.

Os anos eram de transgressões, vanguardismos, dissipação — e drogas — na vida e nas artes, o que provocou reações vigorosas. Uma Liga pela Moralidade denunciava a “derrocada dos costumes”, namorava a censura e projetava um saneamento de textos literários. Na mira dos moralistas, a cena editorial carioca, que gerava obras desafiadoras como A Fêmea, de Orestes Barbosa, livro que envereda por um carrascal de adultério, homossexualidade, prostituição e até zoofilia. O Rio se despregava do Brasil dos coronéis.

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As mulheres, que pelo país se descabelavam no tanque e no fogão, começavam a sair da casca na metrópole. Algumas fumavam, faziam poesia, discutiam política, trabalhavam na imprensa e se emparelhavam aos homens na vida cultural da cidade, com roupas mais leves e cabelo à la garçonne. Elas estavam à frente da luta pelo direito ao voto e manifestavam um feminismo ainda incipiente, mas já atrevido.

O quadro político, os costumes e a cultura que convulsionaram a capital do país nos loucos anos 20 estão descritos às minúcias em Metrópole à Beira-Mar, prosa agradável e retrato detalhado de um período inigualável. Conhecer essa parte da nossa história guiado por Ruy Castro é um prazer.

Publicado em VEJA de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664

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