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Documentários: entretenimento pop na era das teorias conspiratórias

Em plataformas como a Netflix ou na TV paga, o gênero ganhou espaço e conquistou os espectadores com fórmulas típicas da ficção

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 12 ago 2019, 11h15 - Publicado em 9 ago 2019, 07h00
INDÚSTRIA DOS FATOS – Em sentido horário, a partir do alto: ‘Jane Fonda em Cinco Atos’, ‘Privacidade Hackeada’, ‘Fyre Festival — Fiasco no Caribe’, ‘Making a Murderer’, ‘Gelo em Chamas’ e ‘No Coração do Ouro’. No centro, o cantor Bob Dylan em ‘Rolling Thunder Revue’ (Fotos Netflix e HBO/.)

Uma ardilosa sociedade secreta religiosa manipula há décadas os inquilinos da Casa Branca, o coração do poder nos Estados Unidos. Enquanto isso, em um universo não muito distante, dados pessoais de usuários do Facebook são usados de forma ilegal em campanhas políticas. As tramas em questão não embalam um thriller de Dan Brown, autor de O Código Da Vinci: são os temas de dois recentes documentários da Netflix. The Family — Democracia Ameaçada, com chegada à plataforma na sexta-feira 9, debruça-se sobre a tal organização cristã “misteriosa”, já investigada em livros e reportagens de jornais americanos com base mais em especulações que em fatos. A produção da Netflix se propõe a esclarecer, de uma vez por todas, sua real influência sobre um arco de presidentes que vai do democrata Barack Obama ao republicano Donald Trump. Privacidade Hackeada destrincha, com contundência devastadora, como informações de usuários da rede de Mark Zuckerberg foram usadas de maneira indevida nas campanhas de Trump e do Brexit. O notório “caso Cambridge Analytica” rendeu uma multa de 5 bilhões de dólares ao Facebook.

Os dois títulos reforçam uma tendência: os documentários, agora, fazem parte da paisagem pop. Já vão longe os dias em que, salvo uma ou outra exceção com o poder de atrair espectadores às salas de exibição, o gênero era considerado um primo pobre do cinema — quando não uma chatice relegada aos festivais alternativos em cineclubes. A ascensão das produções documentais tem tudo a ver com a disseminação do hábito de garimpar novidades nas plataformas de stream­ing. Com a Netflix à frente, claro: somente neste mês, a empresa colocará em seu menu cinco documentários originais. Esse movimento não é à toa: da série criminal Making a Murderer, lançada em 2015, a novos títulos como Privacidade Hackeada, as produções que visam a retratar personagens, fenômenos, ameaças, intrigas e universos peculiares do mundo real têm garantia de repercussão. Hoje, há não apenas um fluxo considerável de lançamentos, como uma sucessão de programas capazes de gerar discussões sem fim. A sacada da Netflix provocou um efeito cascata. A HBO, que já tinha tradição no ramo, ampliou sua oferta de filmes do gênero. O serviço Prime Video, da Amazon, também tira seu naco. Essa guerra particular — que se estende às produções nacionais — atesta: assim como dramas ou comédias, o documentário tornou-se um filão de relevo.

VERSÃO BRASILEIRA – ‘Bandidos na TV’: história do apresentador que encomendaria os crimes que noticiava (Reprodução/Netflix)

O fenômeno, evidentemente, não nasceu do nada. Os novos documentários são a perfeita tradução televisiva de tempos que talvez ficarão marcados na história como a era das teorias conspiratórias. A crise econômica de 2008 levou muita gente a perder a fé nas antes intocáveis instituições, da política à Igreja, do setor econômico ao Judiciário. As suspeitas pioraram com a popularização dos celulares e a algaravia de informações desencontradas do mundo hiperconectado. Esse excesso de estímulo alimenta uma dúvida amplamente disseminada: no que e em quem se deve acreditar, afinal? O público busca nos documentários respostas para essa indagação. Em muitos casos, são respostas bem específicas, a bem da verdade. “As pessoas desejam ver uma história que as informe, mas, principalmente, reforce as crenças e teorias que elas já têm”, diz Paul C. Hardart, professor da Universidade New York.

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Além de conquistarem a conexão com o espírito conspirativo contemporâneo, os documentários ganharam evidência por ter tomado um banho de loja: eles agora se valem de um arsenal de fórmulas engenhosas (confira o quadro abaixo). A narrativa mantém um pé no jornalismo e usa truques dos roteiros típicos de Hollywood para pisar fundo na linguagem da ficção. Recorre-se sem parcimônia aos ganchos e reviravoltas usuais nas séries dramáticas. Há trilhas musicais marcantes, e depoimentos “fortes” são liberados a conta-gotas para ampliar o suspense. Produções como The Family e Privacidade Hackeada abordam temas distintos, mas convergem na adoção de um expediente muito apreciado pela audiência: a promessa de expor o que há por trás da fachada de instituições respeitáveis. Em The Family, pesquisadores munidos de organogramas e calhamaços de fotos de políticos ao lado de líderes religiosos se desdobram no afã de comprovar a trama paranoica.

Na verdade, os documentários de hoje aprimoram técnicas já testadas e aprovadas no passado recente. Entre 2004 e 2006, o gênero teve um raro instante de boas bilheterias nos cinemas graças a Fahrenheit 11 de Setembro, do diretor Michael Moore, que desancava o presidente americano George W. Bush. A onda não se sustentou, mas é indiscutível que Moore pôs em voga muitas das táticas, digamos, combativas das produções de agora. Curiosamente, a transmutação dos documentários teve também a influência de um formato que abdica das imagens: o podcast. Making a Murderer (2015), da Netflix, surgiu na esteira do podcast Serial, que soma 420 milhões de downloads desde 2014. Programas assim querem ser mais que meras reconstituições: anunciam revelações que teoricamente mudariam os rumos de casos já encerrados. Making a Murderer defende com unhas e dentes a tese de que os dois acusados de um assassinato no interior americano, embora condenados, seriam inocentes.

Bem de acordo com o caráter elusivo das organizações e personagens que pretendem devassar, os novos documentários às vezes também precisam ser avaliados com certo ceticismo. Lançado em maio passado, Bandidos na TV, da Netflix, narra o suposto envolvimento do ex-deputado e apresentador Wallace Souza (morto em 2010) com uma facção criminosa de Manaus: ele instigaria crimes para aumentar a audiência de seu programa televisivo. A série, uma coprodução anglo-brasileira, é brutal — mas não se avexa em beber da mesma linguagem sensacionalista que deseja criticar. O programa que abraça com maior despudor, no entanto, a confusão entre o real e a realidade fabricada é o filme sobre Bob Dylan dirigido por Martin Scorsese para a Netflix. Rolling Thunder Review é um legítimo representante dos documentários que saciam o público com a exposição controlada da intimidade da celebridade retratada. Ocorre que, para resumir a personalidade enigmática de Dylan, seu diretor mistura fatos com fake news sem cerimônia. Na nova era dos documentários, a regra mais importante venha quem sabe da velha máxima do fofoqueiro Nelson Rubens: “Eu aumento, mas não invento”.

(Fotos: Netflix, HBO e/Getty Images)

Publicado em VEJA de 14 de agosto de 2019, edição nº 2647

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