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A vida dos outros

Em livro que traz lições ao Brasil atual, o conservador Michael Oakeshott alerta para os perigos de governos que buscam moldar cidadãos pela régua de sua fé

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 1 fev 2019, 21h24 - Publicado em 1 fev 2019, 07h00

A certa altura de A Política da Fé e a Política do Ceticismo, Michael Oakeshott descreve características dos partidários do primeiro estilo de fazer política. O filósofo e professor da London School of Economics escreve com palpável reprovação sobre os adeptos da “política da fé”: “Esses homens acreditavam que Deus, providencialmente, pusera nas mãos do exército parlamentar o poder necessário para instaurar o reino da retidão”. No zelo por essa retidão, “a formalidade no governo dá lugar ao ativismo e à defesa da fé”, que deve submeter os governados a um único padrão — a “conduta correta”.

Se o leitor brasileiro, ao deparar com essa descrição, identificar semelhança com os discursos e atitudes de certos ministros do atual governo Jair Bolsonaro (e do próprio presidente), não será por acaso. Oakeshott descrevia um estilo de fazer política característico da Europa nos últimos cinco séculos e que tem, na origem, forte marca de radicalismo religioso. Mas seu alcance não se restringiu nem à época, nem à geografia europeia, e a “política da fé” pode ser encontrada em todos os pontos do espectro ideológico. A experiência brasileira atual é só uma versão caricata dela.

A Política da Fé e a Política do Ceticismo é hoje um clássico do filósofo conservador inglês que, aos poucos, vai sendo mais publicado e mais conhecido no país. A obra tem a peculiaridade de ter vindo a público postumamente: era desconhecida até mesmo dos mais próximos colaboradores de Oakeshott em vida. Ele morreu em dezembro de 1990, aos 89 anos, e foi apenas em maio do ano seguinte que Timothy Fuller (editor do original e autor da introdução) e sua colega Shirley Letwin descobriram o texto.

Redigido nos anos 50, o livro traz a marca inconfundível do pensamento de Oakeshott. O filósofo investiga dois estilos que caracterizaram a política europeia desde o século XV. Em um dos extremos, está o que o autor chama de política da fé, pela qual o governo “está a serviço da perfeição da humanidade”, cabendo aos governantes a tarefa de impor da maneira mais uniforme possível práticas e atividades que garantam aos governados a conquista dessa excelência. Além da vertente propriamente religiosa, cuidadosamente examinada por Oakeshott no livro, a política da fé também conhece uma matriz laica, profetizada nos escritos do filósofo inglês Francis Bacon: a crença, presente desde as origens do Estado moderno, de que o cada vez mais minucioso aparato do governo pode orquestrar a vida dos cidadãos com vistas a alcançar o bem comum. A versão mais radical dessa concepção de política, de acordo com Oakeshott, seria o Estado totalitário soviético, com seu controle absoluto da vida dos cidadãos.

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‘A Política da Fé e a Política do Ceticismo’, de Michael Oakeshott (tradução de Daniel Lena Marchiori Neto; É Realizações; 232 páginas; 59,90 reais) (//Divulgação)

No outro extremo, encontra-se o que Oakeshott classifica de política do ceticismo, que rejeita qualquer idealização quanto a uma possível perfeição humana e reconhece uma irredutível pluralidade nos indivíduos das sociedades complexas. Uma “desconfiança cautelosa” afasta o cético de radicalismos. Segundo o estilo cético — que conta com a inequívoca simpatia de Oakeshott —, “governar não é impor uma única moral ou outra direção, tônica ou maneira às atividades de seus governados”, pois a “aprovação ou reprovação moral não fazem parte da função do governo, que não está, de modo algum, preocupado com as almas dos homens”. Devemos ao estilo cético, que descende de John Locke, passa por Blaise Pascal e David Hume, Edmund Burke e Adam Smith, um primeiro “triunfo” da modernidade: a distinção entre política e religião. Somem-­se a isso o apreço ao governo guiado pelo “império da lei” e o reconhecimento da multiplicidade de interesses na tarefa de governar, e prontamente reconhecemos no estilo cético um dos esteios da política moderada e prudente, apreciada sobretudo no mundo inglês. Não poderia haver oposição mais cristalina ao modelo “cruzado moral” dos partidários da política da fé.

Oakeshott, contudo, não via esses extremos como duas forças políticas que esgotavam as alternativas de governo. Em uma argumentação arguta, o autor demonstra que as tendências da fé e do ceticismo coexistiram ao longo da modernidade, e suas formas radicais são modelos que demarcam limites de sua teoria. Governos europeus de todas as colorações partilharam de elementos comuns tanto a um quanto ao outro estilo, e nossa linguagem política é carregada, por isso, de uma ambiguidade ineliminável. Termos como “democracia”, “justiça” e “liberdade” contêm inúmeras camadas de significados justamente porque estilos distintos de política usaram esses conceitos de múltiplas maneiras.

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A recente experiência brasileira ilustra a lição de Oakeshott. Um governo dito de esquerda, como foi o do PT por quase catorze anos, pode adotar todo o vocabulário e estilo da política da fé, convicto de que cabe ao governo ensinar a virtude para alcançar o bem comum, isto é, aderir à “retidão” de um discurso em tese igualitarista no plano econômico e progressista em matéria de comportamento. O governo nos faria “moralmente bons” com base na régua de suas convicções político-morais, e usaria os instrumentos do Estado para tanto — de políticas econômicas punitivas ou compensatórias ao currículo de ensino, tudo se conformaria ao grande plano de nossa “salvação” pela fé progressista.

Agora, no outro extremo ideológico, o governo Bolsonaro adota a mesma linguagem — e atitude — da política da fé. Ricardo Vélez Rodríguez, ministro da Educação, está não apenas preocupado em resgatar os “valores tradicionais da sociedade (…), da família e da religião” como convencido de que é tarefa da educação estatal fazê-lo — nem que para isso um subordinado seu tenha de declarar que Bolsonaro é “dono do Enem”. Se Oakeshott precisasse de um exemplo bem radical e contemporâneo de política da fé, com um governo querendo ensinar a “retidão moral” a súditos que deveriam adorá-lo, dificilmente encontraria exemplo melhor.

O que está em baixa na experiência brasileira (e mundo afora), e que surge no livro como alternativa para navegar entre extremos, é uma política da moderação, que o autor ilustra com a figura do “estivador”, retirada de um ensaio de Halifax, estadista inglês do século XVII. O “estivador” é prudente ao tomar decisões, cuidadoso na condução de mudanças e compreensivo quanto à diversidade de opiniões e finalidades humanas. No governo, vê o sucesso com cautela; na oposição, opõe-se apenas ao inadequado; e oferece apoio antes aos mais fracos que aos poderosos. O elogio do “estivador” seria um deslize idealista do cético conservador? Talvez, se pensarmos que sua Inglaterra querida e prudente vive os extremos da tolice no Brexit. Mas, se é para idealizar algo, que seja a busca da calmaria política.

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Publicado em VEJA de 6 de fevereiro de 2019, edição nº 2620

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