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Ainda sem consenso, debate sobre reduzir juros do cartão ganha força

Em julho, a taxa anual do juro do rotativo voltou a crescer, segundo dados do Banco Central (BC), para, em média, insaciáveis 445% ao ano.

Por Pedro Gil 16 set 2023, 08h00
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  • Um dos personagens mais marcantes do grupo inglês de comédia Monty Python é o Sr. Creosote, interpretado pelo ator britânico Terry Jones no filme O Sentido da Vida (1983). O homem exageradamente obeso vai a um restaurante e, sempre faminto, é recebido pelo maître com um banquete. Ele então se empanturra de patês, caviar, tortas e carnes, e bebe litros de champanhe e cerveja. Durante o festim, o Sr. Creosote passa mal, mas, ainda assim, não para, arrebatado pela fartura. Ao fim do jantar, é persuadido pelo garçom a comer uma última bala de hortelã e, literalmente, explode. A cena desperta no público uma mistura de risos e asco. Trata-se, guardadas as proporções, de uma imagem que pode ser usada para ilustrar o que ocorre no Brasil quando o consumidor entra no chamado rotativo do cartão de crédito, acionado quando ele não paga a totalidade da fatura — e que é comum levar o devedor a um estouro. Em julho, a taxa anual desse juro voltou a crescer, segundo dados do Banco Central (BC), para, em média, insaciáveis 445% ao ano.

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    O assunto foi colocado recentemente em discussão pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que afirmou ser preciso encontrar uma saída, mas sem correr risco de afetar o crédito no país. “Não tem como dizer agora qual será a solução, mas é preciso endereçar o assunto”, disse ele em evento com banqueiros, em São Paulo. “Não fazer nada pode ser pior do que achar uma solução organizada”. Campos Neto tem razão. O endividamento excessivo é um problema crônico que afeta milhões de brasileiros. Entre os vilões apontados está justamente o cartão de crédito. Recente pesquisa da Confederação Nacional do Comércio (CNC) aponta que 86,8% dos consumidores endividados têm débitos no rotativo, e o percentual é crescente.

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    arte juros

    Para aliviar o problema, o governo federal lançou o Desenrola, programa que facilita a renegociação de dívidas vencidas de consumidores negativados e com restrições de crédito. O texto, aprovado recentemente na Câmara, propõe um limite de 100% para o crédito rotativo caso o setor não apresente uma sugestão que reduza a taxa. A inspiração veio da Inglaterra, que convencionou, por lá, que nenhuma dívida pode ter o dobro do tamanho daquela que foi originalmente contratada pelo cliente.

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    DINHEIRO NO BOLSO - Haddad: para o ministro, é preciso ampliar o acesso a crédito
    DINHEIRO NO BOLSO - Haddad: para o ministro, é preciso ampliar o acesso a crédito (Andre Violatti/Ato Press/Agência O Globo/.)

    A sugestão de impor algum tipo de restrição assustou a indústria financeira. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) criticou a medida e disse que limitar os juros do rotati­vo pode inviabilizar o uso de cartões e reduzir a oferta de crédito. Para a Asso­cia­ção Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), “não há uma solução única” e o assunto precisa ser “discutido de maneira técnica por todo o mercado”. Todos concordam que algo precisa ser feito, sob risco de tornar inviável o uso do dinheiro de plástico e atrasar o crescimento econômico — pessoas que entram no rotativo muitas vezes não conseguem se livrar da dívida, seus nomes ficam sujos na praça e são excluídas do ciclo de consumo.

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    Os juros para essa modalidade tornaram-se incontroláveis desde 2003, quando o Congresso revogou o artigo 192 da Constituição Federal, que estabelecia que as taxas de juros praticadas pelas instituições financeiras nas operações de crédito deveriam ser limitadas a 1% ao mês — portanto 12% ao ano.

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    FRUSTRAÇÃO - Temer: em 2016, o ex-presidente lançou uma medida para reduzir os juros, mas ela não surtiu efeito
    FRUSTRAÇÃO - Temer: em 2016, o ex-presidente lançou uma medida para reduzir os juros, mas ela não surtiu efeito (Chema Moya/EFE)

    O caso brasileiro é uma excentricidade. Nos Estados Unidos, a taxa básica de juros está em 5,5% ao ano, enquanto a cobrança do rotativo é de 24%. Alguém poderá dizer que se trata de uma nação rica e, portanto, a comparação é injusta. Há outros exemplos. No Chile, mais próximo da realidade do Brasil, os juros do rotativo estão em 40% versus uma taxa básica de 10,25%. “A proporção de nossos juros é uma distorção quase pornográfica”, diz Carla Beni, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV).

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    Afinal, por que as instituições financeiras cobram taxas pantagruélicas? Os bancos argumentam, com certa razão, que os índices brasileiros de inadimplência estão entre os mais altos do mundo. As taxas de juros elevadas são usadas como proteção contra os não pagantes. O sistema brasileiro tem outra jabuticaba. Trata-se do parcelamento de compras sem juros, frequentemente em dez vezes. Segundo especialistas, o modelo custa caro para as instituições, que acabam oferecendo crédito acima do que o consumidor pode assumir — e, claro, compensam isso obrigando os devedores a arcar com juros nas alturas.

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    Os debates em torno do tema devem crescer nas próximas semanas. O Congresso deu um prazo de noventa dias, a partir do final de agosto, para as instituições financeiras apresentarem propostas de alívio dos juros. Existem sugestões a caminho. Segundo Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, uma alternativa seria alterar a data de início da cobrança do rotativo para o dia da compra e não do vencimento do cartão, como é feito em outros países. “Isso acabaria trazendo uma remuneração adicional para as financeiras, que reduziriam a taxa final”, afirma o economista.

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    DEVEDORES - Feira de renegociação de dívidas: inadimplência é alta no Brasil
    DEVEDORES - Feira de renegociação de dívidas: inadimplência é alta no Brasil (Renato S. Cerqueira/Futura Press)

    De tempos em tempos, derrubar os juros do cartão de crédito vira a prioridade da vez para os governantes. Em 2016, o presidente Michel Temer chegou a anunciar que o rotativo do cartão de crédito seria reduzido pela metade com a possibilidade de parcelar a dívida em suaves prestações. A medida entrou em vigor, mas não mudou o cenário. “Parece que diminuiu, mas era tão alto que ninguém reparou”, disse, entre risos, o ex-presidente a VEJA. De fato, o efeito da iniciativa foi modesto: as taxas eram de 475% ao ano em 2016 e agora estão em 445%. Recentemente, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que os juros do rotativo precisam cair, mas que a solução não poderia comprometer o sistema de vendas consagrado pelos varejistas e amplamente adotado pelos consumidores. “Nenhum dos modelos em discussão pressupõe uma ruptura do produto e de como ele se financia”, disse Haddad.

    Um movimento interessante foi feito em 2020 quando o então presidente Jair Bolsonaro sancionou a nova lei do Cadastro Positivo, como é chamada a lista de bons pagadores usada por empresas e instituições financeiras para conceder crédito e atenuar cobranças em caso de atraso — se o histórico for, claro, de bom pagador. Segundo a empresa de análise de crédito Serasa Experian, após a vigência do Cadastro Positivo, 9,5 mi­lhões de brasileiros com ganho mensal de até dois salários mínimos passaram a ter acesso ao que o mercado chama de crédito de qualidade. Antes do Cadastro Positivo — que confere notas aos consumidores conforme a pontualidade nos pagamentos —, essas pessoas tinham poucas chances de ser aprovadas nas análises feitas pelas empresas concedentes, por falta de informações suficientes para a concessão segura de crédito. O Cadastro Positivo, de fato, é aliado da redução de juros. Nos Estados Unidos, é um dos mecanismos que permitem manter baixa a taxa ao consumidor. Segundo pesquisa feita em 2022 pelo Banco Central, as taxas cobradas das pessoas que têm pontuação alta no Cadastro Positivo eram, em média, 10,4% menores do que as cobradas daquelas que não têm nota boa. Não há dúvida: enquanto uma solução final não vier, os juros insaciáveis continuarão a esvaziar os bolsos dos devedores.

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    Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859

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