Spielberg: ‘Eu entendo a solidão do Bom Gigante Amigo’
'Fiz o filme como um antídoto para o cinismo. Há tanta divisão no mundo hoje', diz o diretor sobre seu retorno ao universo infantil ao site de VEJA
Steven Spielberg começou sua carreira com um suspense (Encurralado), ajudou a inventar o blockbuster (Tubarão), recriou a ficção científica (Contatos Imediatos do Terceiro Grau) e os filmes de aventura (a série Indiana Jones), revolucionou os efeitos especiais (Jurassic Park). Fez longas-metragens sérios para ganhar Oscar também – e venceu, com A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan. Também esteve por trás de produções para crianças que moldaram gerações, especialmente E.T. – O Extraterrestre, além, claro, de atuar como produtor em Gremlins, Os Goonies e De Volta para o Futuro, que influenciaram toda uma geração de cineastas, de J.J. Abrams aos irmãos Duffer, da série do momento, Stranger Things. Pois, depois de emendar três trabalhos em torno de conflitos – Cavalo de Guerra, Lincoln e Ponte dos Espiões –, ele volta ao universo infantil com O Bom Gigante Amigo, em cartaz desde quinta-feira no país. Baseado no livro de Roald Dahl, o longa tem roteiro da mesma Melissa Mathison de E.T. — que morreu em novembro, antes de o filme ficar pronto. Não dá para comparar os dois, mas o novo filme com certeza tem o seu encanto.
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Em O Bom Gigante Amigo, a menina Sophie (Ruby Barnhill) passa acordada a maior parte de suas noites no orfanato. Numa delas, vê algo que não deveria: um gigante (Mark Rylance, vencedor do Oscar de coadjuvante neste ano pelo longa anterior de Spielberg, Ponte dos Espiões) andando pelas ruas e espiando pelas janelas das casas. Depois do susto inicial, Sophie descobre que, na verdade, ele é um Bom Gigante Amigo, que sofre bullying de seus irmãos por se recusar a comer criancinhas. É um filme em que pouco acontece, às vezes é até um pouco monótono, mas que procura a delicadeza dos pequenos momentos na relação entre a menina e o gigante de orelhas grandes, olhos amorosos e fala atrapalhada – ele inventa palavras a partir das que existem. “Para mim, era fácil contar essa história, porque eu entendo exatamente o que o Bom Gigante Amigo passa”, disse Spielberg durante uma rodada de entrevistas no Festival de Cannes, onde o filme foi exibido fora de competição. “A solidão é um lugar familiar para mim. É algo do qual tentei escapar, e às vezes preciso encher minha própria vida de sonhos para fingir que não sou solitário. Eu era assim quando era pequeno, antes de ter filhos, antes de me casar. Mas me lembro como se fosse hoje como era me sentir isolado e sozinho. E esse é o sentimento despertado pelo Bom Gigante Amigo em mim.”
Spielberg leu o livro de Roald Dahl para seus filhos Max (do casamento com a atriz Amy Irving), Sasha, Sawyer, Mikaela e Destry (do casamento com Kate Capshaw) e também os filhos de Capshaw antes do casamento dos dois, Jessica e Theo. Além de seu amor pela obra, havia outra razão por trás de seu interesse em rodar a história. “Fiz como um antídoto para o cinismo. Porque há tanto cinismo no mundo hoje! A maneira como as pessoas opinam… Há tanta divisão no mundo, mais do que em qualquer outro momento de toda a minha vida.” Por isso, um de seus filmes favoritos de super-heróis nos últimos tempos foi Guardiões da Galáxia, de James Gunn. “Porque é cheio de ironia, otimista, não é cínico nem se leva a sério demais. É um sopro de ar fresco”, disse. Apesar de assistir às produções baseadas em quadrinhos, confessa não ser fã do gênero. “Gosto mais do personagem que tem o que todos temos, e descobre algo a mais em si num momento necessário, do que alguém que entra numa cabine telefônica, troca de roupa e vai salvar a vida de alguém”, afirmou. “Parece que estou zombando, mas não é isso, eu amo alguns desses filmes: os Superman de Richard Donner, O Cavaleiro das Trevas do Chris Nolan, o primeiro Batman do Tim Burton, o primeiro Homem de Ferro. Mas são tantos que minha cabeça fica confusa, um se parece demais com o outro que saiu um mês atrás. Tenho um problema de separar um do outro.”
Em O Bom Gigante Amigo, o cineasta usa a técnica de performance de captura de movimentos para transformar os atores em gigantes digitais, que convivem com as pessoas de carne e osso. Não é novidade que Spielberg gosta de tecnologia, mas ele não é muito fã do uso de alta taxa de quadros (Ang Lee acabou de rodar em 120 quadros por segundo, em vez dos tradicionais 24). “O filme fica menos parecido com filme e mais com a vida real. E eu vou ao cinema para escapar da vida real, não para vê-la duplicada”, disse. Também é defensor da película frente ao digital. “É a diferença entre uma pintura a óleo e uma em pastel. Entre impressionismo e fotorrealismo. Gosto de um pouco de impressionismo nos meus filmes. Mas sou a favor de experimentar novas técnicas e tecnologias.”
“Fiz como um antídoto para o cinismo. Porque há tanto cinismo no mundo hoje! A maneira como as pessoas opinam… Há tanta divisão no mundo, mais do que em qualquer outro momento de toda a minha vida”
Apesar disso, não acha que um dia vai dirigir um dos filmes da série Star Wars. Seu amigo George Lucas lhe ofereceu o trabalho uma vez. A resposta de Spielberg? “Olha, George, você faz filmes no espaço sideral, eu faço filmes na Terra, e o espaço sideral vem até nós. Essa é a diferença entre a gente!” Diferente, portanto, de seu discípulo J.J. Abrams, que dirigiu Star Wars – O Despertar da Força. Os dois se conhecem desde que Abrams tinha 15 anos de idade e foi contratado para montar os filmes Super 8 de Spielberg. “É uma loucura quantos anos o conheço. É uma loucura como estou velho!”, disse o diretor, que completa 70 anos em dezembro, mas mantém o mesmo jeito jovial. Não dá sinais de parar. Está filmando Ready Player One, com realidade virtual, de novo com Mark Rylance, que virou um amigo e também está no elenco de seu longa seguinte, The Kidnapping of Edgardo Mortara. Prepara a produção de um outro filme de Tintin, a ser dirigido por Peter Jackson, e procura um projeto para o húngaro László Nemes, diretor de O Filho de Saul, vencedor do Oscar de produção estrangeira este ano. “Não penso em parar nem penso em como consigo fazer tanta coisa. Continuo trabalhando. É uma coisa natural para mim. Levanto de manhã e vou trabalhar, da mesma maneira como meu pai fazia.”
Influenciados por Steven Spielberg
J.J. Abrams
Super 8 (2011) é uma grande homenagem ao mestre – neste caso, literalmente, já que Abrams montou os filmes de estudante de Steven Spielberg quando era adolescente. Um grupo de garotos faz um filme caseiro sobre um acidente de trem e depara com acontecimentos estranhos.
Jeff Nichols
Em Midnight Special (2016), o diretor de Amor Bandido e O Abrigo mostra sua face spielberguiana com a história de um pai (Michael Shannon), que escapa de uma seita com seu filho, dono de poderes especiais, enquanto o governo está em seu encalço.
Irmãos Duffer
A série Stranger Things, no ar na Netflix, tem elementos de Stephen King e John Carpenter, mas, no centro da trama, é E.T. – O Extraterrestre: um ser estranho (aqui, a menina Eleven) é abrigada por um bando de garotos que tenta protegê-la em suas bicicletas.