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Após reforma, museu de Freud em Viena expõe lado B do pai da psicanálise

O espaço, na antiga casa do gênio, amplia a visão sobre sua herança

Por Malu Neves, de Viena
Atualizado em 9 out 2020, 18h11 - Publicado em 9 out 2020, 06h00

Ao atravessar a porta de número 19 da Rua Berg­gas­se, em Viena, duas projeções passeiam pela mente do espectador. O olhar percorre aquele que foi o trajeto dos pacientes nas sessões com o pai da psicanálise. Ao mesmo tempo, o observador busca, sem discrição, bisbilhotar sua intimidade. Junto à esposa, seis filhos, cunhada e governanta, Sigmund Freud morou por quase cinco décadas, de 1891 a 1938, nesse endereço no Distrito 9 da capital austríaca. A dinâmica de sua casa — que funcionava também como consultório — é revisitada fielmente no Sigmund Freud Museum. Depois de um ano e meio fechado para uma reforma de 4 milhões de euros, o local acaba de reabrir com o dobro do tamanho: 550 metros quadrados. O emaranhado de aposentos distribuídos pelos quatro andares ilumina a intimidade de Freud. Agora, sem cortes: em seu novo formato, o museu escancara sua vida privada, bem como expõe seus pensamentos, triunfos e até lances questionáveis.

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A localização da casa lhe garantia proximidade da universidade de medicina, além de ascensão social: Freud migrou do “bairro judeu”, ou Distrito 2, para uma área mais favorável à sua reputação. Ambicioso estudante de medicina, ele mais tarde criaria as célebres teorias que deixaram marcas na ciência, cultura e sociedade. Na mais revolucionária delas, apresentou o conceito do inconsciente, em que processos e doenças mentais ocorrem sem que o indivíduo se dê conta. Propôs, então, formas alternativas de tratamento, como a hipnose para curar distúrbios ou depressões — antes generalizados como “histeria”. Incansavelmente, Freud pesquisou sobre a natureza dos sonhos e criou o termo Complexo de Édipo para explicar a ligação fundamental do filho, quando criança, com a mãe. Para uma época de costumes tradicionais, os estudos de Freud eram tidos como progressistas. Mas, ironicamente, o médico conduzia sua família como um patriarca tradicional. “Freud é exposto sob todos os ângulos, incluindo seus valores conservadores”, diz a pesquisadora Martha Tretter, ligada ao museu.

TEMPLO DA MENTE - O museu em Viena: da rotina médica ao horror nazista – (Xinhua/AFP)

Ao tocarem a campainha, os pacientes passavam por um sóbrio corredor, onde penduravam casacos e guarda-chuvas. O acesso a esse espaço é novidade e revela, finalmente, o trajeto para ingressar na sala de espera do doutor Freud, recriada com móveis originais doados na década de 70 por sua filha caçula, Anna. Graças a uma nova escadaria interna que conecta salas e andares, o visitante acessa a antiga cozinha da casa, por onde os pacientes discretamente passavam ao terminar a sessão, para não serem identificados.

A experiência do visitante fica mais aguçada ao chegar ao quarto onde nasceram as primeiras sessões de psicanálise, antes fechado ao público. Cada paciente, a maioria com 20 e poucos anos, se submetia a mais de 1 000 horas de terapia, nas quais eram tratados seus medos, neuroses e obsessões. É o que relata o novíssimo e robusto Freud, Berggasse 19 — The Origin of Psychoanalysis, com lançamento mundial pela editora Hatje Cantz. O livro é um rico dossiê de toda a coleção de arte do museu, além de conter análises de especialistas. Entre os documentos inéditos estão manuscritos sobre o espólio da família Freud e a cópia original de sua agenda de trabalho. A partir da renovação, as paredes do consultório foram despidas e mostram um vermelho-­­bordô, a cor preferida de Freud, que servia como perfeito pano de fundo à sua vasta coleção de antiguidades. “Parecia um templo, um museu arqueológico”, descreveu na época a poetisa americana Hilda Doolittle, que via o psiquiatra cinco vezes por semana. De um total de 3 000 objetos de arte, oitenta são agora mostrados ao lado de dezenas de documentos e instrumentos hospitalares, kits de viagem e miudezas que revelam sua ligação com a então noiva, Martha Bernays.

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TERAPIA – Sala de espera de Freud: muitos pacientes iam às sessões em sigilo – (Xinhua/AFP)

Antes do casamento, Freud e ela se corresponderam longamente por cartas. Ele compartilhava com Martha sua fascinação pela cocaína. Em seu artigo “Über Coca” (1884), declarou alcan­çar “uma duradoura euforia” que lhe tirava fome, fadiga e dava vigor. Fez uma tentativa frustrada de curar com cocaína o médico e amigo Ernst von Fleischl-Marxow. Dependente de morfina, o paciente se tornou viciado nas duas drogas e morreu. As práticas malsucedidas de Freud renderam acusações de charlatanismo. No livro Freud: a Construção de uma Ilusão, o acadêmico americano Frederick Crews sustenta que o austríaco teria fraudado casos notórios. Mesmo raciocínio tem o filósofo francês Michel Onfray, autor de O Crepúsculo de um Ídolo, a Fábula Freudiana, que o acusa de mentir e alterar dados clínicos.

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O museu reformulado não esconde essas e outras controvérsias. Exemplo disso é a fenda na parede do quarto da filha Anna, que revela fios de uma linha de telefone inativa, conectan­do-­­a ao quarto de Dorothy Burlingham, parceira de trabalho e amante nunca assumida. Mais que tudo, porém, dá visibilidade ao legado incontestável de Freud. Lá está a maior biblioteca de psicanálise da Europa. No 1º andar, o público se esbalda com mais de 40 000 itens, entre livros e mídias interativas.

MEMORABILIA - O porta-retratos com fotos dos filhos (acima) e relíquia de sua coleção: o universo do homem que deixou marcas na cultura e na sociedade – (Fotos Guenter Koenig/Sigmund Freud Fondation/.)

Para espanto de muitos, não está no local o símbolo maior da psicanálise. O divã permanece em Londres, para onde Freud fugiu dos nazistas, em junho de 1938. Consigo, levou o que conseguiu. “Deixamos o consultório vazio para que isso fale por si só”, diz a diretora Monika Pessler. O museu homenageia os 76 judeus “depositados” na Berggasse 19 antes de serem deportados para campos de concentração. Quatro irmãs de Freud foram vítimas do Holocausto. Ele escapou graças à mudança às pressas, mas morreria pouco depois em Londres, de câncer, aos 83 anos. As ideias nascidas naquela casa em Viena, porém, não morreram.

Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708

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