Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Jesus Cristo, o alvo favorito das ‘fake news’ na história

Livro ‘Cogumelo Jesus e Outras Teorias Bizarras sobre Cristo’ analisa os boatos atrelados ao messias cristão

Por Maria Clara Vieira Atualizado em 7 nov 2018, 17h21 - Publicado em 7 nov 2018, 16h47

Está no Evangelho de Marcos, capítulo 8. A caminho do povoado de Cesareia, Jesus pergunta aos apóstolos: “Quem dizem os homens que eu sou?”. As respostas refletem os boatos da época: “Alguns dizem que é João Batista, outros que é Elias ou algum outro dos profetas”. Uma infinidade de histórias sem fundamento continuou pipocando nestes dois milênios desde a passagem do Nazareno pela Terra — apimentadas pela circunstância de que há pouca evidência sobre a própria passagem, que dirá sobre os detalhes dela. Algumas das hipóteses mais repetidas, curiosas ou abertamente estapafúrdias estão reunidas — e devidamente desmontadas — no livro Cogumelo Jesus e Outras Teorias Bizarras sobre Cristo, do escritor Paulo Schmidt (Editora Harper Collins). “Pode-se dizer que Cristo foi, e continua sendo, uma das maiores vítimas de fake news da história”, compara Schmidt.

O escritor vê paralelos na forma como os boatos sobre Jesus foram criados e se espalharam e o modo como hoje funciona a fábrica de notícias falsas da internet. “A fórmula é a mesma, de misturar informação falsa com uma ou outra verdadeira, mas tirada do contexto, e assim passar a impressão de que o conjunto faz sentido”, explica. A obra trata de teorias bem conhecidas, como a de que Jesus e Maria Madalena se casaram e tiveram filhos, e outras menos, como a de que o pai terreno do filho de Deus seria um centurião romano. Das teses que reuniu, a mais sem pé nem cabeça, segundo o autor, é a que dá título ao livro: a de que Jesus não existiu e seria fruto de uma viagem alucinógena dos apóstolos sob o efeito de um cogumelo. A história, cheia de incongruências e malabarismos morfológicos, partiu de um cientista respeitado que depois dela, claro, deixou de sê-lo.

Schmidt enxerga na invenção de histórias sobre Jesus dois motivos principais. Um é o de desmerecer as crenças cristãs investindo contra a reputação dele. O outro é ganhar dinheiro — vide o Código Da Vinci, delirante ficção sobre Cristo, Madalena e sua descendência, que rendeu filme e muitos milhões a seu autor, Dan Brown. As fantasias causam impacto e persistem na memória coletiva porque, de certa forma, aproximam o sacrossanto do homem comum. “Para quase todo o mundo ocidental, o nome de Jesus é sagrado, e sagrado é sinônimo de poder. Queremos que o sagrado caiba em nós mesmos, para que possamos parecer com ele, de alguma forma”, diz o filósofo Luiz Felipe Pondé. “Jesus já passou por tantas adequações a contextos e visões de mundo que não vou me espantar se, daqui a pouco, ele virar um algoritmo”, brinca.

Engrossa consideravelmente o caldo da boataria a falta de documentação original da vida e dos feitos de Cristo. “Temos pouquíssimas certezas sobre o que Jesus realmente disse e fez”, aponta o historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lembrando que só no século XIX surgiram os primeiros estudos totalmente desvinculados do viés teológico. A prova científica de que Jesus de fato existiu foi constatada por vias indiretas, a chamada múltipla atestação — quando dois ou mais autores que nunca tiveram contato algum entre si descrevem fatos sobre um terceiro, atribuindo-lhe até frases inteiras e quase idênticas. “A ausência de documentação não impediu que as pessoas acreditassem em Cristo. O próprio Sócrates nunca escreveu coisa nenhuma e ninguém deixou de considerá-lo um grande filósofo”, argumenta Chevitarese.

Confira a seguir alguns boatos sobre a vida de Jesus e sua desconstrução:

 

A viagem do cogumelo

Teoria: Jesus nunca existiu — era fruto de uma alucinação provocada nos apóstolos pelo consumo do cogumelo Amanita amuscaria, utilizado em rituais antigos (e, curiosamente, o mesmo que dá “vida” ao Super Mario, no videogame). Mais jovem do time de estudiosos recrutado para investigar os Manuscritos do Mar Morto, tesouro arqueológico descoberto em 1947, o britânico John Allegro não gostou do trabalho da equipe e resolveu publicar as próprias conclusões — com sabor de viagem alucinógena — sobre o que havia lido nos pergaminhos. Fundamentou a insanidade com interpretações amalucadas de termos da época.

Desmonte: Ninguém levou a sério quando Allegro cismou que “Yaveh”, o nome judaico de Deus, significava “suco da fecundidade”, uma forma educada de dizer sêmen — o produto do cogumelo de formato “fálico”. Freud explica.

 

O pai de família

Teoria: Jesus e Maria Madalena se casaram e tiveram filhos. O boato corria muito antes de O Código da Vinci, reforçado pelos escritos da chamada biblioteca de Nag Hammadi, um conjunto de escritos dos gnósticos, seita que conviveu com o cristianismo em seus primórdios e absorveu alguns de seus princípios. A fonte principal da teoria é o Evangelho de Felipe, presente na biblioteca, onde se lê que “a companheira do Salvador é Maria de Magdala. Ele a amava mais do que a todos os discípulos e a beijava frequentemente na boca”.

Desmonte: colocada em seu contexto, a interpretação cai por terra. Primeiro, os gnósticos eram contra a procriação e “companheira”, no caso, não tem nenhuma conotação conjugal. Segundo, beijo na boca, na época, era cumprimento comum.

 

A marca do Pantera

Teoria: Jesus era filho bastardo de um soldado romano chamado Pandera ou Pantera. O boato, um dos primeiros sobre Cristo, partiu dos rabinos fariseus que ele criticou. No Talmude, compilação de textos de estudo do judaísmo que estava sendo organizada na época, Jesus é frequentemente chamado de Yeshu ben Pandera — ou Pantera, como aparece em textos pagãos da mesma época.

Desmonte: rápido e contundente — não havia soldados romanos na região quando Jesus nasceu. De qualquer forma, dificilmente um filho bastardo teria permissão para entrar em uma sinagoga. Acredita-se que a cisma com o sobrenome “Pandera” seja fruto de uma confusão intencional com a palavra “Parthenos”, que significa “virgem”.

 

Mais do que amigos

Teoria: Jesus teve um caso com seu amigo Lázaro, a quem teria pedido que se encontrasse com ele para passar a noite “usando um lençol de linho sobre o corpo nu”. Quem levantou essa bola foi o americano Morton Smith, com base em um manuscrito do século XVII encontrado em um monastério em Mar de Saba, no deserto da Judeia pelo próprio pesquisador. O texto que relatava a homossexualidade de Jesus foi atribuído ao teólogo cristão Clemente de Alexandria, que o citava como parte do “Evangelho Secreto de Marcos”.

Desmonte: Antes que fossem realizados exames químicos no material, os tais manuscritos desapareceram. A única prova de sua existência eram as fotos tiradas por Smith. Anos depois, um estudo do texto revelou diferenças de estilo e caligrafia em relação às obras originais de Clemente de Alexandria. Para completar, um professor da Pensilvânia apontou as incríveis semelhanças entre a teoria de Smith e um romance inexpressivo chamado O Mistério de Mar Saba, publicado em 1940.

 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.