O detetive Wayne Hays (Mahershala Ali) mata o tempo praticando tiro ao lado do parceiro, Roland West (Stephen Dorff), em um ferro-velho no Estado americano do Arkansas. É lua cheia, os dois lamentam a morte do ator Steve McQueen naquela noite de novembro de 1980 e saem para a patrulha. Vem então o chamado para averiguarem um caso na aparência banal: duas crianças, um casal de irmãos de 10 e 12 anos, saíram para passear de bicicleta e estavam sumidas. A dupla vai à casa do pai, um pobre-diabo beberrão que cuida dos filhos enquanto a mãe ataca de periguete na noite. Tom Purcell, o pai, está desesperado. Mas o olhar de seu intérprete, o excelente Scoot McNairy, trai sentimentos inconfessáveis no encontro com os policiais. Ao mirar Hays, ele denota sutil animosidade; logo se fixa em West, deixando claro, mesmo de modo inconsciente, que este lhe parece mais confiável. Que um seja negro e o outro branco é um dado incontornável na atmosfera intoxicante da terceira temporada de True Detective.
A série de Nic Pizzolatto narra uma história distinta a cada leva de episódios. Depois de uma primeira temporada primorosa, ambientada em sua cultura sulista de origem (ele é da Louisiana), Pizzolatto deu uma derrapada ao debruçar-se sobre o subúrbio mafioso de Los Angeles. A volta à HBO, em 13 de janeiro, prova que o roteirista é capaz de bem mais quando está na zona de conforto. O novo True Detective não só marca um retorno ao sul dos Estados Unidos. Fala-se outra vez de um crime que envolve crianças, com sinais de ocultismo macabro à espreita. Retoma-se, sobretudo, a cruel entropia entre um investigador e o crime que investiga: o caso mexe com fantasmas do detetive Hays e produz vincos profundos em sua alma.
Há, no entanto, um elemento que a série ainda não tinha visitado: os mecanismos perversos do racismo. Embora não chegue a surpreender, dada a fase luminosa de sua carreira, vem a calhar que Mahershala Ali protagonize tanto True Detective quanto um filme como Green Book: o Guia, com cinco indicações ao Oscar 2019. As duas produções representam formas antípodas de abordar a tensão racial. Enquanto Green Book não disfarça a intenção de ser mais um filme a faturar (inclusive prêmios) em cima do justo apelo do debate sobre afirmação, a série da HBO prefere fugir de respostas fáceis e expor a realidade em todas as suas duras contradições — uma honestidade que causa desconforto.
O racismo mostra sua cara nas entrelinhas: é o sutil asco no olhar do pai, que parece ser só um bom sujeito imerso em um meio opressivamente medíocre; é a tendência de todos os brancos, até os colegas na polícia, de não levar em conta o que o detetive Hays diz; ou a promoção do colega West em seu lugar, agravada pela desconfiança sobre sua conduta. A ação ocorre em três tempos na vida de Hays: em 1980, quando o caso explode; dez anos depois, ao ser reaberto graças a uma descoberta-bomba; e em 2015, com o policial idoso dando depoimento a um programa de TV. A teia temporal é típica da mente intrincada de Pizzolatto, mas serve a mais um fim: examinar como, ao modificar sua feição, o preconceito se perpetua.
Os três de oito episódios que foram ao ar até agora são insuficientes para afirmar, por antecipação, que a série se redimiu por completo — em português claro: muita água ainda terá de rolar para ver onde a trama elusiva de Pizzolatto vai desembocar. Mas não é improvável que, no fim dos trabalhos, o detetive Hays se imponha como o tipo mais fascinante vivido por Mahershala Ali até hoje. Do casamento e formação de sua família à conquista da fama, tudo na vida do personagem tem ligação íntima com o caso Purcell.
O lance mais perturbador: seria afoiteza pôr a mão no fogo pelo policial negro. Mesmo que padeça de fato sob o peso do preconceito, ele já demonstrou que sabe jogar a carta da autovitimização — reação questionável, mas previsível em um ambiente no qual a histeria coletiva elege como alvos não só os negros, mas qualquer pessoa fora do padrão (um índio esquisitão, por exemplo). E é disso que vem a verdade indigesta, mas muito atual, escancarada por True Detective: não há tática mais eficaz para atiçar os instintos bárbaros de uma sociedade em desalento que sacar de uma causa irrepreensível — digamos, a defesa das criancinhas — para demonizar minorias. Não se assuste, aliás, se você tiver a impressão de que já viu este filme bem ali, pertinho.
Publicado em VEJA de 30 de janeiro de 2019, edição nº 2619