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‘A Chegada’ faz da arte da tradução estopim para ação eletrizante

Uma linguista quebra o silêncio entre seres humanos e visitantes alienígenas e incendeia a tela

Por Isabela Boscov
25 nov 2016, 09h57
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  • As naves são tão serenas, e surgiram tão sem alarde, que é preciso um certo esforço racional para compreender a ameaça que elas podem representar. Em muitos casos, também, as posições escolhidas não parecem ser agressivas. Um dos gigantes de meio quilômetro de altura paira sobre o campo inglês — uma elipse negra e lisa, sem arestas nem saliências, flutuando quieta poucos metros acima da pastagem. Outras naves, igualmente inertes, colocaram-se sobre o deserto do Sudão, o cenário agreste do Estado americano de Montana, a gelada Groenlândia, o Caribe venezuelano, a selva de Serra Leoa. Mas há naves a postos sobre Sydney, os populosos Japão e Paquistão, a estratégica Sibéria russa, a região volátil do Mar Negro e também sobre o Mar da China, bloqueando o principal teatro ofensivo da potência asiática. No total, doze nações hospedam os visitantes. Todas formaram forças-tarefa que cooperam ressabiadamente entre si na tentativa de atinar com o propósito dessa invasão silenciosa e estática, em que nenhum gesto é feito. Louise Banks (Amy Adams), linguista, e Ian Donnelly (Jeremy Renner), físico, são convocados pelas Forças Armadas a Montana: é urgente que se inicie algum tipo de diálogo com os alienígenas e, portanto, que se encontre um idioma comum. Louise é uma criatura das salas de aula, não do trabalho de campo. Mas, quando um elevador a transporta para dentro da nave para o primeiro encontro com os invasores e a gravidade interna faz com que as perspectivas se invertam de forma desorientadora, suas pupilas se dilatam com o temor e a excitação do novo. Sua curiosidade é muito mais do que acadêmica: é existencial — a certeza de que tudo que ela dá por certo pode se inverter de forma tão precipitosa quanto os horizontes da nave.

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    Qualquer ficção científica que se incline mais para o especulativo e o filosófico do que para o tecnológico, como A Chegada (Arrival, Estados Unidos, 2016), que estreia no país nesta quinta-feira, é inevitavelmente comparada a 2001 — Uma Odisseia no Espaço. Nos quase cinquenta anos que se passaram desde o lançamento do clássico de Stanley Kubrick, porém, a comparação nunca favoreceu a um sucessor: os silêncios longos e implacáveis do filme de Kubrick, sua simetria opressiva e sugestiva de um mundo muito além das possibilidades do cálculo humano, os planos lentíssimos que arrancavam o espectador de qualquer zona sensorial conhecida — a revolução que Kubrick operou na sintaxe da ficção científica foi tão completa e audaciosa que até hoje nenhum cineasta conseguiu avançar sobre ela. Apenas aproximar-se dela já pode ser considerado um feito de muita monta. E é isso que faz o diretor canadense Denis Villeneuve, de Incêndios, Os Suspeitos e Sicario, em A Chegada: Villeneuve circum-navega os temas, as imagens e a linguagem de 2001, apropriando-se da sua grandiosidade para criar uma experiência que seja ao mesmo tempo arrebatadora e apropriada a um programa de fim de semana no multiplex. Trata-se de um plano delicado, mas Villeneuve o executa com êxito próximo do absoluto. É uma investida auspiciosa para o diretor, que já trabalha numa tarefa que vem despertando iguais medidas de entusiasmo e desconfiança: retomar o clássico de Ridley Scott com Blade Runner 2049, a ser lançado em outubro do ano que vem.

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    Em A Chegada, é verdade, o diretor tem um fiel da balança a alertá-lo para qualquer desequilíbrio: a interpretação centrada e coesa de Amy Adams, capaz de jogar sua rede muito longe nas águas incertas do filme e recolhê-la sempre junto de si de novo (e está enganado quem julga que o trailer do filme dá alguma pista real das surpresas que ela apanha nessa rede). É da melancólica Louise Banks, tão fascinada pela lógica da comunicação e tão incomunicável na solidão em que se insulou de tragédias passadas, que emana muito do deslumbre do filme. Metida num traje volumoso de contenção biológica, de frente para a barreira leitosa que a separa dos visitantes (e que lembra de maneira muito conspícua uma tela de cinema), Louise aguarda, com a respiração entrecortada. Ao ver que passa bem o passarinho levado junto numa gaiola — o truque antiquíssimo dos mineiros para alertar contra vazamentos de gás —, Louise arranca o traje, caminha para a barreira e espalma a mão sobre ela, num gesto que alguém, do outro lado, imediatamente reciproca. Só aí Louise exala de fato: “Isso, sim, é uma apresentação digna do nome”, diz, encantada.

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    A descoberta de um vocabulário não é bem a primeira coisa em que se pensa quando se menciona ação eletrizante, mas Amy e Villeneuve, juntos (e com a ajuda da trilha impactante de Jóhann Jóhannsson), conseguem tornar febril esse processo. A cada novo vocábulo que Louise e os visitantes compartilham entre si, segue-se um incremento exponencial na comunicação — e na sua possível ramificação em mal-entendidos. Uma língua é um sistema de pensamento, explica Louise; se os idiomas humanos já colidem em tantas barreiras conceituais, são infinitas as oportunidades de equívoco na tradução de uma linguagem circular como a dos alienígenas, com suas frases contínuas, em que o fim e o início se ligam. Louise é uma Pedra de Roseta viva; reverbera com o desejo de traduzir, o receio de não conseguir fazê-lo e a intuição de que compreender os visitantes pode expandir sua percepção em direções imprevistas.

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    À medida que vai e vem no tempo, e que se alterna entre seus diversos palcos — o da vida que Louise teve até ali; o da sua missão como linguista; e o do jogo político desencadeado pelas naves —, A Chegada vai revelando a beleza harmônica com que sua estrutura se funde ao seu conteúdo. Villeneuve, porém, é um diretor que gosta também de emoção visceral. E em Amy Adams, de novo, ele encontra sua melhor intérprete desde a Lubna Azabal de Incêndios para satisfazer essa exigência e acrescentar toda uma outra camada de sentimento à que já existia em A História de Sua Vida, o conto do americano Ted Chiang que lhe serve de base (e que está sendo publicado aqui, numa coletânea, pela editora Intrínseca). Louise, em certo sentido, é uma viajante tão intrépida quanto o astronauta Dave Bowman de 2001. Sua odisseia, contudo, acontece em um outro espaço — não o que está além do seu mundo, mas o do mundo que se desvenda dentro dela.

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