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‘Ainda não é suficiente’, diz Stella Branco, médica trans formada pela USP

Em depoimento a VEJA, uma das duas primeiras mulheres transgênero diplomadas desde a fundação do curso de medicina da universidade fala sobre sua trajetória

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 14 jan 2024, 09h47 - Publicado em 14 jan 2024, 08h00

“Eu cresci em Rio Claro e vim de uma família que se pode chamar de disfuncional. Muita briga entre meus pais, problemas financeiros, vícios. Já na infância meus desejos eram reprimidos, eu tinha vontade de fazer balé, brincar de boneca, usar as roupas das meninas e não podia. Por esses motivos, eu tinha uma carência, uma vontade de ser escutada e a escola não soube lidar comigo, eu era mandada para fora da sala todos os dias. Tinha um TDAH não diagnosticado e, por esse motivo, tudo virava punição. Apesar disso eu sempre fui muito boa nas notas, pegava o conteúdo muito rapidamente. Eu sempre tive muito mais aptidão para exatas, mas durante o ensino médio eu fiz uma pré iniciação científica e nesse projeto trabalhei muito com saúde pública. Pude ver o impacto da informação, do conhecimento e do cuidado na vida das pessoas, me apaixonei por isso. Eu também comecei a pensar em medicina como uma forma de me provar para a minha família. Em uma ocasião, ouvi de uma amiga da minha mãe que quando eu passasse em medicina eu não seria mais o filho gay, eu seria o filho médico. Isso me dava força para estudar, para me debruçar nesse sonho, porque eu acreditei que eu seria abraçada por completo.

“Já saí pra morar fora de casa logo depois do ensino médio. Eu vim para São Paulo e fiz seis meses de cursinho, mas entrei em depressão e voltei para Rio Claro. Depois que terminei o primeiro ano do pré-vestibular, comecei a cursar engenharia, com uma bolsa integral que era financiada por uma empresa. Gostei muito das matérias do básico, mas não me identifiquei com o mercado de trabalho, então voltei a estudar. Eu fui para Campinas, fiz mais um ano de cursinho e passei na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.

“Quando eu me mudei para Ribeirão eu já estava muito cansada. Durante o cursinho tive uma aula que falou sobre sexualidade e as questões de gênero começaram a ficar claras. Me lembro de sair da sala, abraçar a professora e chorar muito. Nessa época eu também tinha acabado de sair da igreja. Aos 10 anos comecei a frequentar e comecei a acreditar que aquela seria a maneira de salvar a minha família. Enfim, quando eu passei no curso, a realidade foi que me dividiram em dois. Uma das partes era louvada e colocada em um pedestal e a outra parte era escorraçada e humilhada o tempo todo. Aconteceu uma cisão. Além disso, encontrei um curso totalmente técnico, focado no ensino básico, eu estava muito longe daquilo que eu sonhava, de ajudar as pessoas, ouvir e levar conhecimento. Nesse momento eu me afundei em um buraco muito profundo que mesclava questões de gênero e questões existenciais. Foi um processo de adoecimento que vinha sendo construído há muito tempo e que encontrou espaço fértil na frustração.

“Depois disso eu comecei a fazer terapia, tive apoio de uma profissional que foi muito importante na minha vida. Até esse momento eu olhava para a psiquiatria com um pouco de resistência. Fã de Clarice Lispector, eu tinha uma certa admiração pela loucura, mas depois eu fui acolhida por professores, por amigos e por uma comunidade. Através deles, entendi a importância do cuidado com a minha cabeça e com o meu corpo. Durante toda a graduação minha identidade de gênero foi patologizada, eu passei por uma internação psiquiátrica, mas depois passei a me tratar com um profissional que cuidou do meu TDAH de maneira adequada e isso mudou completamente a minha vida.

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“Quando você entra no curso, eles esperam que você seja apenas médica, mas eu me senti bem quando passei a viver os diversos aspectos da minha vida. Esse foi meu último ano de curso e foi muito transformador. Eu consegui executar o sexto ano da faculdade, gravei um curta metragem que foi escrito por mim, criei um sarau, juntei dinheiro pra minha prótese e para a minha formatura, estou terminando de escrever um artigo e um livro, que serão publicados em breve, e também estou concorrendo a um prêmio internacional voltado a estudantes de medicina com relevância social. Sem dúvidas, o fim do curso também foi a finalização de um ciclo. O fim de um e o começo de outro. Eu nunca me senti tão íntegra.

“Peguei meu diploma em dezembro e quando isso aconteceu eu já estava praticamente empregada. Hoje eu me reencontrei, tenho um trabalho de que gosto bastante. Trato população em situação de rua, em hotéis sociais de São Paulo. Isso faz sentido para mim.

“Para outras pessoas trans, acho que é uma fresta para onde se pode olhar e ter novas conquistas. É a materialização de um sonho muito antigo. Mas não basta, ainda é muito pouco. Eu e as poucas pessoas trans na medicina não vamos conseguir mudar o mundo sozinhas. A única solução são políticas públicas sérias. Eu tive privilégios que me trouxeram aqui, mas se eu fosse expulsa de casa com 14 anos, como muitos, eu provavelmente não estaria onde estou. Muitas vezes o que sobra para nós é a prostituição e o tráfico, porque todas as nossas bases são retiradas á força. Essa não pode ser a única possibilidade. Nós somos revolucionárias.”

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