O belo, o trágico e o duvidoso na posse de Barroso no STF
O novo presidente do Supremo terá a missão de respeitar a harmonia entre Poderes e conter o vício de falar demais. Sua posse é um retrato da dificuldade
Sem data venia: se quiser cumprir de fato a missão a que se propôs em sua exuberante posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luís Roberto Barroso precisará conter seu gosto pela ribalta e o vício da Corte pela personalização e politização excessivas. Será um difícil aprendizado, como comprovam tanto seu discurso de posse quanto as cenas explícitas ou de bastidores protagonizados na quinta-feira 28. Há bons e maus presságios aí.
Barroso assume a presidência do STF num momento de (re) compostura e consolidação democrática, após as aventuras golpistas que culminaram no 8 de Janeiro. Entre os muitos desafios nesse processo de retomada da democracia, uma das principais é cumprir aquilo que Montesquieu dizia e nossa Constituição adotou — a harmonia entre os Poderes. O novo presidente do STF pontuou isso com sabedoria em sua manifestação.
Sabendo que há um clima de desconfiança especialmente entre o Judiciário e o Legislativo, mais do que nunca é preciso estar atento ao sistema de freios e contrapesos, aquele em que os Poderes mutuamente se controlam, se autorregulam e evitam abusos de parte a parte. Não à toa, Barroso foi conciliador, fez a devida deferência ao deputado federal Arthur Lira (PP-AL) e ao senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidentes, respectivamente, da Câmara dos Deputados e do Senado.
Além de pregar a harmonia entre os Poderes, o novo presidente acenou a militares (afirmando que as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo) e defendeu uma pauta progressista, evitando tal rótulo (referindo-se a “causas da humanidade”). Mas foi aí que Barroso mostrou ser Barroso — o iluminista-liberal-progressista que esquece a toga e agarra o púlpito para propor “uma agenda para o Brasil” que, sob inspiração da tríade “integridade, civilidade e confiança”, propõe a construção de consensos em oito itens em torno dos quais “o país se aglutine”. Como reservadamente ressaltou uma sábia professora, seria lindo se estivéssemos diante do senador Barroso, e não do juiz recém-empossado na presidência da mais alta Corte do Brasil.
Na união entre o belo e o trágico, entre o luminoso e o perigoso, o ministro precisará trabalhar como agir diante do que ele próprio diagnosticou ao pregar a harmonia entre os Poderes. Há um ambiente de desconfiança, assombro até, em torno de excessos protagonizados pelo Supremo no campo político. O próprio Barroso foi um ponta de lança nesse excesso, ajudando a quem quis desqualificar a ação da Corte como partidária, ou anti-bolsonarista. Basta lembrar suas falas, como o “perdeu mané, não amola”, ou a ideia de que “derrotamos o bolsonarismo”. A reconstrução democrática passa por um longo trabalho de desarme tanto dos espíritos golpistas quanto dos desconfiados de uma possível ação não republicana por parte de instituições como o STF.
É fácil admirar o novo presidente do Supremo. Trata-se de um homem inteligente, cortez, elegante — além da solidez jurídica, o professor é generoso e respeitoso no trato pessoal, como ficou evidente antes, durante e depois de uma entrevista que deu ao Amarelas on Air, de VEJA, em 2021, na conversa com Clarissa Oliveira, Matheus Leitão, Thais Oyama e este colunista. Mas institucionalmente não é difícil questioná-lo, uma vez que Barroso é um dos exemplos também da face mais espetaculosa da Justiça brasileira desta década. Um juiz espelhando agendas de políticas públicas, como fez em seu discurso de posse, é uma faceta evidente desse mundo espetaculoso.
Se é verdade que o Supremo foi decisivo, sim, na contenção dos frágeis diques que separavam o país do autoritarismo, também é verdade que alimenta um estado de coisas quase único na história das supremas cortes no mundo. Sobre o lado positivo, a coluna sugere a leitura do texto do professor Oscar Vilhena (FGV) publicado na edição brasileira do Journal of Democracy, editado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso. No artigo que abre a edição de junho passado, Vilhena analisou o comportamento do STF na defesa da democracia brasileira, a partir da ascensão ao poder de um presidente da República ostensivamente hostil à democracia constitucional estabelecida em 1988.
Segundo o autor, no extenso arco de proteção da democracia brasileira estabelecido pela Constituição Federal de 1988, o STF desempenhou um papel central. A postura expressamente “combativa” assumida pela Corte, diante dos crescentes ataques ao Estado Democrático de Direito, reacendeu o debate sobre o controvertido conceito de “democracia militante” – algo que lhe parece inescapável em tempos de ameaça de erosão da democracia. “Reivindico que, nos dias de hoje, o conceito de democracia militante designa, sobretudo, uma postura a ser assumida por aquelas instituições e autoridades que têm a responsabilidade por promover a defesa da democracia. Essa postura reclama uma atitude alerta, vigilante e, se necessário, combativa na defesa da democracia, por meio das ferramentas institucionais e legais de autodefesa democrática, operadas dentro do marco dos direitos fundamentais”, escreveu.
Ao fim do artigo, porém, Oscar Vilhena lembrou: no momento em que a democracia começa a retornar à normalidade e que as ameaças não mais partem do cerne do poder ou mesmo das Forças Armadas, “é fundamental que a postura militante empenhada pelo Supremo Tribunal Federal, durante o governo Bolsonaro, também se contraia”. No que recorreu a uma frase do ministro do STF Edson Fachin: “É preciso precatar-se para que a dose do remédio não o torne um veneno”.
Pois não faltam venenos ao redor da Corte. O STF herdou aquilo que as constituições democráticas ocidentais do pós-guerra reservaram às cortes. Essas constituições ampliaram o poder de juízes e lhes pediram coragem política, integridade moral e energia intelectual para proteger as liberdades. Como lembra o professor Conrado Hubner Mendes (USP), foi um anteparo do liberalismo para salvar a própria democracia e conter a tentação autoritária.
No caso brasileiro, a separação de Poderes, o vácuo institucional deixado por um Congresso de qualidade duvidosa e por um Executivo à mercê da força política de lideranças como Eduardo Cunha, nos tempos de Dilma Rousseff, ou Arthur Lira, na era Bolsonaro, garantiram lugar peculiar ao Supremo. O Parlamento e o presidente da República são eleitos; o STF, não. Executivo e Legislativo podem ser cobrados e punidos por seus eleitores; os ministros do STF, não. O presidente da República é o primeiro alvo das ruas; os membros do STF estão mais longe disso, apesar dos ataques que alguns deles sofreram nas ruas de Nova York enquanto participavam de convescotes promovidos por bancos e fundos de investimento (o que em si é uma aberração institucional dupla). Enquanto isso, a corte suprema tem o poder de revogar decisões de representantes eleitos.
Esse lugar peculiar também lhes alimentou igualmente o gosto supremo pela ribalta. Barroso é afeito a esse gosto. No auge da automistificação em torno da Corte que agora dirige, o ministro imaginou o STF como a “vanguarda iluminista que empurre a história na direção do progresso moral e civilizatório”. Se a crise política e a erosão de direitos dos últimos anos deram ao STF a oportunidade de atender a suas promessas, também lhe assegurou uma inevitável reação de dúvida e questionamento. O preço está posto.
O exibicionismo dos julgamentos transmitidos ao vivo, o debate político de alto nível combinando-se com a preocupação atenta às câmeras que lhes assistem, o excesso de entrevistas sobre temas políticos e – pasme! – sobre as agendas que eles próprios julgarão no futuro breve, as conversas em off com jornalistas, não desprovidas de pitacos, fofocas, humor e maldades típicas do jornalismo político de Brasília – tudo isso levou à espetacularização da Justiça, ao ativismo judicial, à politização indevida, a personalização dos 11 da Corte (ou quase todos, ressalvadas as exceções marcadas pela prudência e pelo comedimento, como a ministra Rosa Weber). Os “togados da breca”, na ironia do cientista político Christian Lynch, ou a ministocracia, no conceito acadêmico sugerido por Diego Werneck e Leandro Molhano, autores de um excelente paper publicado na revista do Cebrap.
Que o Supremo Tribunal Federal dos próximos anos contradiga o seu próprio DNA militante dos últimos anos e o DNA do próprio ministro que o presidirá a partir de agora. Se é para distensionar a política e sua radicalização, precisará atuar mais como um poder moderador. Com avanço na proteção de direitos, freios à vocação autoritária de certos grupos e autocontenção em sua prodigiosa tentação de ator político decisivo.
Um equilíbrio complexo e difícil, além de belo, trágico e arriscado.