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O rei fujão

As tentações da ganância e da luxúria desviaram Juan Carlos, da Espanha, do script

Por Roberto Pompeu de Toledo Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 14 ago 2020, 06h00

Ninguém mais acredita que as monarquias existam por direito divino. Como explicá-las, porém, sem recorrer a alguma coisa de divino, ou de sobrenatural, ou mítico, ou mágico? Veja-se o caso de Juan Carlos, o “rei emérito” da Espanha, título que ostenta desde a abdicação em favor do filho, o rei Felipe VI. Acossado por acusações de corrupção, Juan Carlos foi forçado a deixar o país. Um presidente que se refugia no exterior, um primeiro-ministro, governador — até aí, vamos. Mas um rei, ainda que não mais no exercício do cargo, e sem que uma revolução o tenha deposto, eis um fato que choca. Reis não são pessoas comuns, segundo crença que subsiste mesmo em mentes treinadas por dois séculos e meio de Iluminismo.

Mal foi anunciada sua saída, depois de negociações com o filho, e o rei emérito tomou rumo desconhecido. Humilhação das humilhações, igualou-se nesse passo a um vulgar Queiroz, e a pergunta “Onde está Juan Carlos?” passou a ecoar a que perseguia o auxiliar da família Bolsonaro. Segundo reportagem do jornal El País, o Palácio Real, ao comunicar o ocorrido, cuidou de selecionar o verbo que o fizesse do modo mais conveniente. “Mudar” foi o escolhido. O rei decidiu “mudar para fora da Espanha”, anunciou-se. Desprezaram-se as alternativas “sair”, “abandonar”, “deixar” ou “viajar”. Fora de questão estavam “exilar-se” e “fugir”.

Viradas bruscas marcam a trajetória de Juan Carlos. Arrancado aos 10 anos do pai, o príncipe dom Juan, que no exílio reclamava o trono, foi educado à sombra do ditador Francisco Franco, cujo objetivo era torná-­lo seu sucessor. Depois da morte de Franco, porém, revelou-se um estrito cumpridor do pacto que levou o país à democracia. E mais ainda fortaleceu sua posição, como eixo e símbolo da monarquia constitucional, quando da tentativa de golpe em fevereiro de 1981. Enquanto o tenente-coronel Tejero Molina, no Parlamento, mantinha os deputados na mira das armas, e outros militares ensaiavam movimentos de tropas, Juan Carlos enviou ao general Milans del Bosch, o golpista de mais alta patente, telegrama em que dizia: “Qualquer golpe de Estado não poderá se respaldar no rei, que é contra o golpe. (…) Ordeno que retire todas as unidades que tenha deslocado. Ordeno que diga a Tejero que desista imediatamente de sua atitude”.

“As tentações da ganância e da luxúria desviaram Juan Carlos do script”

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Naquele momento, o de sua maior glória, Juan Carlos incluiu uma frase que hoje soa como ironia do destino: “Juro que não abdicarei da Coroa nem abandonarei a Espanha”. Nestes últimos anos, primeiro ele abdicou da Coroa, e agora deixou a Espanha. A desgraça começou em 2012, quando, durante uma discreta viagem a Botsuana, quebrou o quadril. A necessidade de socorro trouxe a aventura à luz do dia e, com ela, os constrangedores detalhes de que a ideia era caçar elefantes, a 50 000 dólares o animal, e que em sua companhia, além de ricos sauditas, encontrava-se uma amante, a alemã Corinna Larsen. O consequente desprestígio levou-o em 2014 à abdicação. Em 2018 começaram a surgir notícias, reforçadas em março último, de fundos de 100 milhões de dólares depositados na Suíça em seu favor, por sauditas interessados em negócios na Espanha. Seguiu-se a decisão de deixar o país, tomada, como a da abdicação, para dar sossego ao filho reinante e salvar a instituição da monarquia.

Monarcas antigos, no Egito e na Grécia, confundiam-se com a divindade. Na Idade Média atribuía-se aos reis o poder de curar com o toque das mãos. A origem divina, os poderes divinos, e mesmo o mais modesto “direito divino”, estão peremptos. Mas continua-se a acreditar no absurdo, ou seja: que uma família tem, sobre todas as outras, o privilégio de aboletar-se num trono e nele permanecer de geração em geração. Ou melhor: finge-se acreditar. Monta-se um teatro e exige-se que o ator no centro do palco, em troca do protagonismo, contente-se com poderes limitados, siga um minucioso manual de etiqueta, mantenha conduta ilibada e renuncie a expansões pessoais.

O papel é de símbolo, como o de certas divindades e dos seres mitológicos. Há um jogo, portanto, que se apoia nos antigos laços com o sobrenatural e com a lenda. Ocorre, no entanto, para às vezes estragar tudo, que os atores são humanos. Na Inglaterra houve o caso do rei que para ficar com a plebeia por quem se apaixonou teve de largar o trono. A instituição monárquica balançou. Na Espanha as tentações da ganância e da luxúria desviaram do script o antes tão providencial Juan Carlos. A monarquia, que nunca foi consenso, voltou a entrar em questão.

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Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700

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