“Ingrid levou oito pontos no nariz e ficou com o olho roxo porque seu marido se irritou no trânsito e bateu nela. Salma levou um murro no queixo porque comprou um armário sem avisar. Sandra foi espancada porque o companheiro a viu no portão com um primo.” Começava assim a reportagem de VEJA de 15 de março de 2006 sobre violência doméstica. Mais de dez anos depois, os relatos impressionantes das agressões do juiz Roberto Caldas a sua companheira mostram que o tema, infelizmente, continua muito atual.
Naquela edição, VEJA trazia o depoimento corajoso de mulheres que haviam dado o primeiro passo para encerrar o ciclo de brutalidade de que eram vítimas: romper o silêncio – “o poderoso e cúmplice silêncio que permite a maridos espancadores continuar aterrorizando a vida de milhões de mulheres em todo o mundo”, destacava a reportagem.
O relato que estampou a capa foi o de Ingrid Saldanha, mulher do ator Kadu Moliterno. Depois de levar um soco do marido durante uma discussão dentro do carro, ela resolveu falar sobre a rotina de agressões.
“Eu tinha só 14 anos quando a gente se conheceu e ele sempre teve muito ciúme. É até engraçado, porque o famoso e bonitão era ele. Mas o fato é que desde o início do meu casamento volta e meia os desentendimentos terminavam em violência física. A gente se separava e depois voltava. Passei muito tempo evitando enxergar, acreditando no amor, tentando preservar a família. O Kadu é um ótimo pai, do tipo que acorda cedo para fazer vitamina para as crianças, ajuda a fazer o dever de casa. Eu não queria privar os meninos dessa convivência, mas hoje consigo enxergar que isso foi um erro. Numa situação de violência a autoestima fica lá embaixo, você não consegue produzir nada, só uma fantasia de que aquilo tenha algum futuro. Acaba se prejudicando e também prejudica a família. No Carnaval, quando ele me bateu, acabei explodindo e expondo todo mundo exatamente da maneira que sempre lutei para evitar”, disse ela.
O depoimento de Ingrid revelava alguns dos motivos que fazem as vítimas de violência doméstica hesitarem em buscar ajuda, como o medo de prejudicar os filhos, a vergonha da exposição e a esperança de que o parceiro melhore. Esses obstáculos já apareciam em outra reportagem de VEJA, publicada na década anterior.
‘O lugar mais perigoso para a mulher é em casa’
Em edição de 1º de Julho de 1998, ao analisar os dados das agressões, a revista observava que “o lugar mais perigoso para a mulher é em casa”. “Segundo dados mundiais, o risco de uma mulher ser agredida em sua própria casa, pelo pai de seus filhos, ex-marido ou atual companheiro, é nove vezes maior do que o de sofrer alguma violência na rua, fora do âmbito familiar. Aquelas que deveriam ser as paredes protetoras do lar atuam como muros do medo.”
Para entender melhor o problema, a reportagem visitou uma Delegacia da Mulher e acompanhou a movimentação das vítimas. “Todas parecem ter uma mesma expressão no olhar. É um olhar vazio, perplexo e derrotado. Ele espelha o caminho que cada uma percorreu até a delegacia, para expor as feridas mais íntimas de sua vida. Muitas desistem à última hora e dão meia-volta antes de entrar. Outras — quase 30% — retornam nos dias seguintes para retirar a queixa.”
Uma dessas desistentes justificava: “Ele nunca tinha me batido antes, foi a primeira vez, não matou ninguém. A gente tem é de resolver as coisas em casa, entre a gente mesmo. Eu é que fiz besteira e agora vou tentar consertar”.
O texto também destacava que “a procura mais intensa de ajuda ocorre às segundas-feiras, logo que acaba o fim de semana de agressões em que a vítima tem poucas possibilidades de escape, pois o agressor está dentro de casa. É nas manhãs de segunda-feira, depois de encaminhar os filhos para a escola e certificar-se de que o marido saiu para o trabalho, que a mulher agredida se põe em marcha”.
Em um exemplo claro de que o combate à violência doméstica ainda tinha um longo caminho a percorrer, a revista registrava o caso de uma mulher que deixou a delegacia angustiada e com uma folha de papel na mão. Era a intimação para seu marido comparecer diante de um juiz, e que ela – a própria vítima – ficou encarregada de entregar ao agressor.