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O Ficha Limpa, Platão e Sócrates

É claro que muitos se dirão frustrados com a eventual não-aplicação da lei do Ficha Limpa já em 2010. Para desaire de alguns, entendo que a sua inconstitucionalidade não está apenas na violação do princípio da anterioridade — não se muda o processo eleitoral menos de um ano antes do pleito —; está também no […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 12h29 - Publicado em 23 mar 2011, 19h39

É claro que muitos se dirão frustrados com a eventual não-aplicação da lei do Ficha Limpa já em 2010. Para desaire de alguns, entendo que a sua inconstitucionalidade não está apenas na violação do princípio da anterioridade — não se muda o processo eleitoral menos de um ano antes do pleito —; está também no desrespeito ao princípio da presunção de inocência.

Vale a pena violar a Constituição para se fazer “justiça episódica”, ainda que movida por uma aspiração justa?

Sempre que alguém aplaudir uma aplicação de exceção da lei,  estará pondo uma corda no próprio pescoço. A própria imprensa, cegada, na sua maioria, pelo desejo de pegar alguns larápios — desejo que pode ser bom e honesto, mas que não tem o direito de ser burro —, está brincando com fogo. Há muita gente que odeia a liberdade de expressão, por exemplo. Os projetos para “controlar a mídia” estão por aí. Assembléias Legislativas, inspiradas na Confecom de Franklin Martins, já começam a votar os seus próprios códigos particulares. ATENÇÃO, SENHORES COMANDANTES DE JORNAIS, TVs, REVISTAS, PORTAIS E AFINS: a Constituição, com clareza inquestionável, assegura a liberdade de expressão – com igual  clareza, garante a presunção da inocência.

Nada impede que, em nome da voz rouca das ruas, de “milhões” de assinaturas, do “desejo coletivo” e outras demagogias, atalhos sejam encontrados para impor formas veladas de censura. Ou alguém é inocente a ponto de achar que a lei que é desrespeitada para “pegar Jader Barbalho” restará inteira para proteger a imprensa, por exemplo?

A questão é antiqüíssima. Está em “Críton – Ou do Dever“, um dos Diálogos, de Platão. Críton tenta convencer Sócrates a deixar a cidade, a fugir – ou vai morrer, uma vez que já foi condenado. E se dispõe a financiar a fuga. Os dois têm, então, um diálogo sobre o dever, a justiça e a “vontade do povo”. Reproduzo trechos, na tradução de Márcio Pugliesi e Edson Bini. E, bem, recomendo Sócrates e Platão para alguns ministros do Supremo.  Volto para encerrar.

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*
(SÓCRATES) – se, ao seguir a opinião dos ignorantes, destruíssemos aquilo que apenas por um regime saudável se conserva e que pelo mau regime se destrói, poderemos viver depois da destruição do primeiro? E, diga-me, não é este nosso corpo?

(CRÍTON) – Sem dúvida, nosso corpo.

(SÓCRATES) – E podemos viver com um corpo corrompido ou destruído?

(CRÍTON)   – Seguramente, não.

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(SÓCRATES) – E poderemos viver depois da corrupção daquilo que apenas pela justiça vive em nós e do que a injustiça destrói? (…)

(CRÍTON)  – De modo algum.

(SÓCRATES) – E, não é a mais preciosa?

(CRÍTON) – Muito mais.

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(SÓCRATES) – Portanto, querido Críton, não devemos nos preocupar com aquilo que o povo venha a dizer, mas sim pelo que venha a dizer o único que conhece o justo e o injusto, e este único juiz é a verdade. Donde poderás concluir que estabeleceste princípios falsos quando disseste inicialmente que devíamos fazer caso da opinião do povo acerca do justo, o bom, o digno e seus opostos. Talvez se me diga: o povo pode fazer-nos morrer.

(CRÍTON)   – Dir-se-á assim, seguramente.

(…)
(SÓCRATES)  É correto que nunca se deve cometer injustiça? É lícito cometê-la em certas ocasiões? Ou é absolutamente certo que toda injustiça deva ser evitada como já concordamos há pouco? E todas essas opiniões, nas quais acordamos, dissiparam-se em tão pouco tempo e seria possível que em nossa idade, Críton, nossas mais sérias controvérsias tivessem sido como as das crianças sem que nos apercebêssemos? Ou devemos nos ater unicamente ao que dissemos, de que toda injustiça é vergonhosa e nociva para aquele que a comete, diga o que queira dizer a multidão, e resulte dela o bem ou o mal? Falaremos assim, ou não?

(CRÍTON)   – Assim.

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(SÓCRATES) – Então, também não devemos cometer injustiça relativamente àqueles que no-la fazem ainda que este povo acredite que isto seja lícito, uma vez que concordas que isto não pode ser feito de modo algum.

(CRÍTON) – Assim me parece.

(SÓCRATES) – É ou não lícito fazer mal a uma pessoa?

(CRÍTON)  – Não é justo, Sócrates.

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(SÓCRATES)   – É justo, como o vulgo acredita, pagar o mal com o mal?  Ou é injusto?

(CRÍTON) – É injusto.

(SÓCRATES) – É correto que entre fazer o mal e ser injusto não há diferença?

(CRÍTON) – Concordo.

(SÓCRATES) – Portanto, nunca se deve cometer injustiça nem pagar o mal com o mal, seja lá o que for que nos tiverem feito (…)

Voltei
Leiam o diálogo inteiro. Deve existir em vários sites por aí. Sócrates não foge. A passagem fundamental do trecho que reproduzo é esta: “se, ao seguir a opinião dos ignorantes, destruíssemos aquilo que apenas por um regime saudável se conserva e que pelo mau regime se destrói, poderemos viver depois da destruição do primeiro?”

O corpo de uma democracia são as leis, é o estado de direito. E nem mesmo para punir “os maus” se deve corrompê-lo com um mau regime, com uma má disciplina. Se as leis que temos não são suficientes ou eficientes para enfrentar os problemas dados, que sejam mudadas — coisa que o Supremo não pode fazer —, mas jamais aviltadas, ainda que com propósitos nobres.

O Supremo começa a ouvir mais o vulgo do que Sócrates e Platão.
*

Parte do texto acima foi publicada num post de 28 de outubro de 2010.
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