Niemeyer, 99: obra grandiosa, ideologia pífia
Complexo Cultural da República, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer e inaugurado hoje. É formado por um museu e uma biblioteca (foto Roosewelt Pinheiro/ABr) Um homem não é sua obra. Céline — Louis-Ferdinand Céline — era um idiota político e um anti-semita delirante. E, no entanto, escrevia como um príncipe. Cumpre não usar o seu belo […]
Os meus amigos sabem o que penso: artistas jamais deveriam se ocupar de política — não em sua arte. Não acredito em obra engajada, a não ser naquela que expressa melancolia, desespero e saudosismo. A boa arte política é sempre reacionária, voltada para o passado. Artistas que se dobram a utopias finalistas se transformam em prosélitos. Desconheço se Churchill escreveu algum verso que tenha dito algo de relevante sobre a condição humana. Mas, em política, foi o maior entre os, chamemo-lo ainda assim, contemporâneos. Cada coisa em seu lugar. É típico do obscurantismo e da burrice — fascista ou leninista — satanizar a obra deixada por um artista por conta do seu alinhamento ideológico — ou censurar Churchill porque mau poeta.
Respeito, como quase sempre, opiniões contrárias e até entendo a natureza da crítica. Pessoalmente, no entanto, acho Oscar Niemeyer um gênio, embora deplore as suas escolhas políticas e enxergue em sua trajetória de vida o principal desvio de caráter dos comunistas: o oportunismo nos meios com o totalitarismo no fim. Mas e daí? Vou dizer, por isso, que não vislumbro no seu trabalho a centelha do gênio? Vislumbro. Não sei quanto tempo ainda dura esta nossa aventura. Pelo tempo que durar, o seu trabalho restará como bom exemplo do que pode produzir o gênio humano.
Assim como, sei lá eu, o gótico foi a expressão material do espírito de um tempo, acho que Niemeyer conseguiu dar forma à cultura moderna, com a leveza do seu concreto, o que já é quase um clichê. A Catedral de Brasília, templo de oração projetado por um ateu militante, consegue a síntese perfeita entre o mundo horizontal e igualitário — o espírito do tempo moderno — e o apelo ao divino, a memória cultural que uma igreja, qualquer uma, evoca. Acho descabidas as críticas a seus prédios brasilienses — “desconfortáveis”, “ignoram a natureza”, sei lá o quê… Mas tudo bem: essa crítica é pertinente e aceitável.
O que censuro mais em Juscelino Kubitschek do que nele, aí, sim, é a vocação para achar que a sociedade obedece a regras que cabem num projeto. Brasília foi, em muitos aspectos, um delírio caro, desnecessário e megalômano, que, ademais, afastou a política da vida dos cidadãos comuns. A concepção, em si, é autoritária, menos pelo que possa haver de “comunismo” embutido do que de descolamento de certa elite da realidade do país. Cidades só nasciam por atos administrativos na vontade de imperadores e déspotas. Elas são construções coletivas, como, aliás, a Brasília cheia de defeitos de hoje prova à farta.