Filha de uma sul-coreana e um americano, a cantora e escritora Michelle Zauner, de 33 anos, nascida em Seul e criada no Oregon, nos Estados Unidos, nunca se sentiu pertencendo a nenhum dos dois países. Sem saber falar coreano, ela cresceu em meio a cultura americana, mas na escola era vista como uma imigrante. Quando viajava para o país asiático, a dificuldade com a língua materna a atrapalhava se inserir plenamente na sociedade. A única pessoa que a fazia se sentir conectada às suas raízes era a sua mãe, com quem aprendeu cozinhar os pratos típicos da culinária coreana. A comida, afinal, era onde ela encontrava o conforto.
Essa frágil ligação de Michelle com o mundo se rompeu em 2014, quando sua mãe morreu. Na época, a artista dava os primeiros passos de sua banda, a Japanese Breakfast, que se apresenta neste domingo, 6, no festival Primavera Sound, em São Paulo. A banda não tem nada da cultura oriental. As músicas misturam guitarras distorcidas com o pop sofrência do shoegaze. A perda da matriarca, no entanto, sempre deu o tom de tudo o que a artista produziu desde então. Seu primeiro álbum, Psychopomp, lançado em 2016, é repleto de referências a ela.
Para lidar com esse luto, nos anos seguintes, Michelle resolveu botar no papel todo o sentimento que sentia pela mãe. O resultado é o livro Aos Prantos no Mercado, cuja edição traduzida para português também chega às lojas brasileiras neste mês. A obra, elogiada por Barack Obama, ficou 56 semanas entre os livros mais vendidos do The New York Times, e emociona pelo relato honesto que fala sobre o luto e a busca por sua identidade cultural.
Em conversa com VEJA por videoconferência, Michelle falou sobre o lançamento do livro no país e o show no festival Primavera Sound. Leia a seguir os principais trechos.
O livro Aos Prantos no Mercado é bastante emotivo. Escrevê-lo foi uma forma que você encontrou para lidar com o luto? Até certo ponto, sim. Quando minha mãe morreu eu tinha 25 anos e eu sentia muita dificuldade em me relacionar com outras pessoas. Parecia que ninguém conseguia entender a minha dor ou saber o que eu passei. Isso realmente me incomodava. Para eu conseguir realmente me expressar, eu queria que as pessoas soubessem o quão a minha personalidade foi impactada para o resto da vida. Minha mãe ficou doente em abril e morreu em outubro. Em pouco mais de seis meses a minha vida desmoronou, inclusive o relacionamento com o meu pai. Grande parte disso, portanto, sou eu tentando descobrir o que aconteceu comigo.
Depois do sucesso do livro, agora você está escrevendo a adaptação para os cinemas. Você percebe um interesse maior nos Estados Unidos por histórias que envolvam os imigrantes coreanos, como o filme vencedor do Oscar, Minari? Será um filme bem diferente do Minari no sentido que eu tive uma formação birracial e isso me proporcionou uma experiência diferente. O filme vai abordar a relação mãe e filha e sobre como poder cuidar de alguém em um estágio terminal. Eu nasci na Coreia mas vim para os Estados Unidos quando tinha um ano de idade. Grande parte da minha criação aconteceu aqui. Estou muito perto de terminar a revisão do roteiro e estou muito feliz com o resultado. Contar essa história têm sido uma experiência reveladora.
No livro você diz que não se sente totalmente americana nem totalmente coreana. Como lida com isso? Um dos questionamentos que eu fiz foi: se um dos seus pais, que te conecta com parte da sua cultura morre, será que isso morre com você também? Isso se tornou uma ideia muito assustadora para mim. De repente, eu não podia mais ligar para a minha mãe e perguntar como cozinhar um prato coreano de maneira correta. De repente, minha legitimidade como uma pessoa meio-coreana ficou em risco.
Seu livro entrou nos mais vendidos do New York Times e foi elogiado por Barack Obama. Você imaginou que sua história pudesse impactar tanta gente? Definitivamente, não. Eu tinha grandes expectativas porque assinei com uma editora grande e tinha um grande número de seguidores. Se o livro entrasse, sei lá, na 14 posição e ficasse ali por apenas uma semana, eu já me sentiria vitoriosa. Jamais poderia imaginar que ele ficaria quase 60 semanas. Fiquei muito satisfeita.
Sua mãe te deu o primeiro violão. Mas ela também não queria que você fosse artista. Como lidou com isso? Os pais são assim. Eles te incentivam para depois dizer: “não seja uma estrela do rock”. Isso é muito comum entre pais asiáticos. Você tem aulas de piano, violino, música clássica, desde muito cedo. Mas, Deus não permita que você siga adiante com isso. Eu implorei por dois anos para a minha mãe para aprender a tocar violão. Eu odiava piano. No fim, ela só queria que eu estivesse segura, que eu arrumasse um emprego que me deixasse financeiramente estável. Quando você é criança, você se apaixona por caratê, ginástica ou outras coisas e depois abandona. Ela achou que meu interesse na música fosse ser assim.
A cultura coreana está ganhando cada vez mais interesse nos Estados Unidos com séries como Round 6, filmes como Minari, além dos doramas e do kpop. A que atribui esse interesse? Eu acho que são ótimas histórias. São conteúdos de alta qualidade aliado a acessibilidade que a internet dá. De repente, você pode acessar o TikTok e ver as pessoas na Coreia. O Kpop está em todas as partes. Eles têm trabalhando para eles os melhores produtores, correógrafos, diretores, diretores de fotografia do mundo. Todos eles se juntando para criarem coisas incríveis. Então, como não adorar isso tudo?
E você tem um grupo de Kpop favorito? Gosto muito de BTS e Blackpink. Ouvi alguma coisa do NewJeans e gostei também. Quando eu era criança, eu gostava de grupos como Fin.K.L e Big Bang.
Recentemente, você fez um cover de Nobody Sees Me Like You Do, de Yoko Ono. Após a II Guerra, ela fugiu do Japão e peregrinou pela Europa e Estados Unidos até encontrar seu lugar no mundo. Você se identifica com ela? Eu sempre tive uma empatia e uma compaixão muito grande pela maneira como ela foi demonizada pelo mundo da música, como fonte do rompimento de uma banda e por ser oriental namorando um homem branco. Eu também sempre fui assim, muito desconfiada e na defensiva e entendo o que ela sentiu. Eu acho que Courtney Love é outro exemplo disso. Naturalmente vou defender as mulheres nessa posição porque eu também venho de um casamento inter-racial. Especialmente no caso de Yoko Ono, ela era uma mulher asiática colocada em oposição indireta ao rock. Ela virou um símbolo de como as mulheres asiáticas não poderiam ser roqueiras. E isso é extremamente pessoal para mim. Acho muito injusto o que aconteceu com ela porque ela é uma pensadora, uma artista inovadora e uma bela compositora. Fiquei muito feliz de fazer esse cover.