Bolsonaro e Lula são duas faces da mesma moeda, ambos apostam que nas eleições de 2022 se repetirá o cara ou coroa. Um é o inimigo querido do outro e tentam conjuntamente, em polos opostos, tornar inviável qualquer outra possibilidade. Não deveria, portanto, surpreender que Lula faça seu reingresso na cena política com um discurso tosco e anacrônico, pois, no seu entender, é a melhor forma de enfrentar o mesmo modo de falar e atuar de seu contendor. O ódio de um pelo outro é o espelho de um amor recíproco. Se um falta, o outro se entristece, fica mesmo amuado.
Essa polarização, contudo, não é fruto somente de uma rija política, com parâmetros próprios, mas expressa algo mais profundo agindo na própria sociedade, com valores morais se esfacelando. Não há adesão coletiva a princípios reconhecidos como comuns, mas questionamentos que atingem o que entendemos como viver em comunidade. Se o PT procurou impor goela abaixo valores tidos por politicamente corretos, ao arrepio do sentimento profundo da sociedade, a reação bolsonarista mostrou que os afetados souberam reagir, expondo os limites de tal tipo de imposição. De lá para cá, a sociedade não conseguiu se recuperar, expondo fraturas à luz do dia.
Há o que poderíamos denominar torpor moral, que está sendo manipulado politicamente. Os óbitos da covid-19 já ultrapassam os 130 mil, uma enormidade. No entanto, a vida segue como se este fosse um dado do destino. Individualmente as pessoas se mostram afetadas, sofrem, sobretudo, quando seus próximos são atingidos, mas isso não se manifesta coletivamente, como quando o presidente da República continua a ser aprovado por expressiva fatia da população, até mesmo na condução da pandemia. A realidade desaparece na perversão moral.
As imagens hilárias do presidente mostrando a cloroquina como solução para a covid-19 são constrangedoras e irresponsáveis, todavia isso não se traduz num verdadeiro protesto, como se a sociedade estivesse anestesiada. Atitudes irresponsáveis desafinando regras básicas de saúde continuam, entretanto os mais anestesiados não cessam de declamar os seus encantos nas redes sociais. É o coro digital da degradação. Se age como o faz, é porque tem a anuência de um setor expressivo da sociedade que nele se reconhece.
Ora, a ciência é um valor civilizatório duramente conquistado no transcurso dos séculos. Sua emancipação dos dogmas da Igreja Católica foi um doloroso e perigoso processo. Métodos experimentais foram elaborados, a dúvida veio a fazer parte do conhecimento, os questionamentos incessantes foram internalizados por todos, a certeza devendo ser argumentada e compartilhada por uma comunidade de pessoas afeitas e formadas nesse mesmo desenvolvimento. Note-se que erros fazem normalmente parte desse processo, alguns chegam a caracterizar o método científico como de tentativas e erros.
Ora, o que estamos presenciando no Brasil? Questionamentos vêm de políticos que não tem a menor noção do que isso significa, como se a sua opinião fosse equivalente a um argumento cientificamente elaborado.
O caso da pastora evangélica e deputada federal Flordelis é, sob essa ótica, exemplar, por expor uma apropriação da religião não apenas pelo lado financeiro, mas também pelo aspecto moral. Segundo todos os indícios apresentados, surge um caso de perversão propriamente dito. Primeiro, há a imagem de uma pastora voltada para a adoção de crianças (mais de 50), elogiada pela ministra Damares Alves, aparecendo na foto como formando um casal ideal com outro pastor. Segundo, esse mesmo pastor seria, além de marido, filho e ex-genro, numa relação de tipo incestuoso que se propagaria para toda a sua “família”. Uma de suas filhas teria sido sexualmente oferecida a outros “pastores”, expondo valores morais em degradação constante. Terceiro, o assassinato do marido, empreendido, segundo o noticiado, por filhos e uma neta de Flordelis, sob as ordens da mãe. O desarranjo moral é total, resvalando para a esfera do crime. E sob patrocínio político.
Meninas são estupradas e, em lugar da compaixão por elas, surgem discussões inócuas sobre o aborto em tal contexto, como se não fossem elas que devessem ser acolhidas, e sim os gritos insensatos dos acusadores com a palavra “assassinos” salivando na boca. Até hoje não se sabe quem vazou a informação sobre o hospital em que foi realizada a interrupção da gravidez, os envolvidos nessa indignidade não foram ainda responsabilizados e, nesse cenário, o ministro interino da Saúde baixou uma portaria criando ainda mais obstáculos para que a interrupção da gravidez se faça, tornando os médicos agentes policiais.
Uma portaria afronta de maneira clara a lei, sem que haja indignação correspondente. Os irresponsáveis que nos governam apostam em que tudo caia no esquecimento.
A acomodação e a tolerância com fraturas morais desse tipo, com a perversão, são as que tornam as sociedades acolhedoras para líderes populistas, de direita e de esquerda, que tudo prometem, pouco entregam e aprofundam o dilaceramento do tecido social.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul