Há quem diga que, dez mil anos antes de Cristo, nossos ancestrais carnavalizaram ritos para espantar os demônios que ameaçavam as boas colheitas.
Qualquer que tenha sido origem, tempo ou espaço, a verdade é que o carnaval, a exemplo do futebol, foi abrasileirado. É uma produção cultural de gente mestiça, musical, malemolente. Transformou-se numa paixão nacional com essência e estética próprias.
Com efeito, a essência e a estética desta festa verde-amarela é sincrética e polimorfa; é pagã e cristã; mistura o profano com o sagrado; tem a alegria dos arlequins e a tristeza dos pierrôs; dança ao ritmo alucinante do frevo-de-rua e aos acordes plangentes do nostálgico frevo-de-bloco; ao tempo em que subverte as regras sociais, devota irrestrita obediência à liturgia das tradições; une traços de confronto social com irresistível pendor democrático tanto que, uma vez instaurada a efêmera monarquia momesca, integram-se pacificamente a “nobreza” e o “terceiro estado”, sob o dístico revolucionário “liberdade, igualdade e fraternidade”, dizendo melhor, no reinado da majestade Momo, todos são livres, iguais e irmãos.
Antes de chegar aos pagos brasileiros, o carnaval passou por um estágio de dominação lusitana com o nome de entrudo e o famoso “Zé Pereira” foi o apelido dado a um português chamado José Nogueira de Azevedo Paredes que, em 1846, fez uma barulhenta passeata na segunda-feira do período momesco, na cidade do Rio de Janeiro.
Por aqui, o entrudo e Zé Pereira foram tomando forma à nossa imagem e semelhança: a festa nasceu como uma concessão dos senhores aos escravos; dos patrões para empregados; da elite para a ralé.
A simples concessão para o folguedo, logo, logo, foi sendo reelaborada, de baixo para cima, incorporando traços e costumes dos elementos formadores da cultura brasileira e fundindo ritmos, danças e gingados de tal forma que explodiu como um espetáculo belo e contagiante, sem similar no planeta Terra.
Em Pernambuco, particularmente no Recife e Olinda, sem qualquer ufanismo, a festa é um caso muito especial no mapa do carnaval brasileiro. Por aqui, continua sendo festa do povo e seu berço é a rua. Sua propagação se deu por meio de troças, blocos, associações recreativas; seu território cresceu e foi das ruas para os bairros e dos bairros tomou a cidade inteira; os salões dos clubes elegantes não resistiram à “ofegante epidemia” que se chama carnaval.
É verdade que, de muita coisa boa e bonita, resta, apenas, o registro da memória histórica. Também, pudera, a urbanização enlouquecida afetou (e para pior) as várias dimensões da convivência humana nas cidades desfiguradas.
É aí que entram em cena o bairro de São José e um punhado de almas que, faz quarenta e dois anos, resolveu resistir e vencer a guerra que mata a tradição e a identidade cultural da nossa gente.
Sob o comando de Enéas Freire que, em 1978, 75 mascarados e uma orquestra de frevo saíram da rua Padre Floriano, Bairro de São José, ganhou as ruas do centro do Recife, mal os comerciantes abriam suas lojas. Uma surpresa alegre e afetiva. Nascia, assim, o Galo da Madrugada. Caiu no goto popular e tornou-se um fenômeno de massas. Toda a cidade canta e dança, vestida em belas e criativas fantasias. Famílias inteiras. O Galo ratificou a vocação carnavalesca do bairro de São José e transbordou para cidades brasileiras e estrangeiras. Este ano desfila em São Paulo, na terça 25.
A paixão à primeira vista dos “galistas” pioneiros transformou-se no amor incondicional de todos os sábados de carnaval. Tudo começa com um farto café regional para aguentar o tranco. As combinações etílico-gastronômicas são as mais estranhas possíveis: tapioca com cerveja, vodka com cuscuz, cachaça com caju e whisky com queijo de coalho.
Chegar bem cedo na concentração oferece ao folião um espetáculo deslumbrante: o Recife se espreguiçando; o bairro acordando; as pessoas chegando sozinhas ou em grupos, fantasiadas e dispostas a integrar uma população inteira que, durante horas, se entrega ao devaneio de uma vida que só conhece alegria.
O Galo da Madrugada é um fenômeno de resistência cultural, de explosão popular, de convivência pacífica e harmoniosa da massa humana com todas as diferenças, grandezas e misérias.
Neste sentido, já ouvi muitos depoimentos sobre o Galo. Entretanto, o mais expressivo veio de famoso cineasta judeu que, ao contemplar a multidão incalculável, do alto do Edifício Trianon, disse, boquiaberto: “agora, eu acredito que a paz é possível”. De fato, ali estavam presentes todos os ingredientes da confusão: bebida, sensualidade, libertinagem, revogação de limites. No entanto, o congraçamento em nome da folia une mais do que separa as pessoas.
Isto tem uma explicação: o Galo da Madrugada é especial personagem de uma utopia chamada “O Reino do Pernambucarnaval” que assim pode ser descrito:
Território: “Recife, cidade lendária” e “Olinda, cidade eterna”.
Governo: monarquia absoluta exercida pela Rainha do Maracatu com poderes mágicos de fada-madrinha e de Santa. O Rei Momo é o bobo da corte.
Constituição: “Art.1- Fica instituído o reino da alegria e decretada a folia, em todo o território do Pernambucarnaval, sob os acordes do Frevo e do Maracatu.
Art. 2- Esta constituição estará em vigor do sábado de Zé Pereira até a Quarta-Feira de Cinzas, revogados a tristeza, o mau humor, o pessimismo e o azar”.
Neste reino, não haverá saudades.
Todos estarão vivos,
“de braços para o alto/frevando sem parar”,
assim na terra como no céu.
As mulheres serão “morenas da cor de canela”,
“diabos louros com cara de gente”,
“mulatas da alma cor de anil”.
E todas terão “pele macia, carne de caju, saliva doce…”
Os homens serão bons e pacíficos.
Sairão fantasiados de anjos,
dizendo a uma só voz:
“Olinda, quero cantar a ti esta canção”.
(O amor será livre, leve e louco).
Todos comerão o Pão que Deus amassou.
Beberão “bate-bate com doce”.
Provarão do vinho que Baco ofertou.
E a sobremesa será filhós.
À noite,
serão iluminadas as casas e as ruas
(em vez de lâmpadas)
por pedaços de lua.
“Na madrugada do terceiro dia”,
choverá um minuto de cinzas
para lembrar que somos pó
e que ao “Bacalhau na vara” retornaremos.
Depois, todos dormirão em paz.
Durante 361 dias, sonharão com “serpentinas partidas”,
até que “o Galo canta e anuncia
a madrugada de um novo dia”.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda do governo Itamar