Dentro de vinte dias, Donald Trump vai tomar posse na presidência dos Estados Unidos em condições de hostilidade quase sem precedentes. Até as próprias cerimônias e festividades, que são uma espécie de noite do Oscar transposta para o mundo político de Washington, passaram por um enxugamento.
Haverá apenas dois bailes inaugurais e a caminhada tradicional entre a Casa Branca e o Congresso, um cortejo triunfal geralmente acompanhado por agentes do Serviço Secreto com expressão de pânico mal disfarçado, foi reduzida para coisa de uma hora.
Isso se a polícia conseguir administrar os que estiverem na rua para festejar e os que vão aparecer para detonar. Os protestos feitos na segunda posse de Richard Nixon, contra a guerra do Vietnã, provavelmente vão parecer fichinha.
E muitos estarão torcendo por uma reprise da desgraça de Nixon, que foi reempossado em janeiro de 1973 e renunciou em agosto de 1974, tragado pelo escândalo de Watergate.
O maior protesto previsto para a posse de Trump teve que mudar a data, de 20 para 21 de janeiro, por exigências burocráticas. Também mudou de nome. De Marcha de Um Milhão de Mulheres em Washington, perdeu o “milhão” e conservou apenas o “mulheres”.
Dentro tradicional espírito esquerdista de abrir o debate sobre tudo e qualquer coisa, o movimento sofreu várias dissidências porque passou a impressão de ignorar uma outra Marcha de um Milhão de Mulheres promovida há alguns anos por mulheres negras em Filadélfia.
O nome sem número tem a vantagem de não precisar cumprir uma promessa impossível, embora seja previsível uma grande participação. A palavra de ordem contra Trump já foi dada desde a eleição: “Não é meu presidente”.
A rejeição a Trump é tão maciça foi difícil até encontrar artistas que se apresentassem na posse. O italiano Andrea Bocelli sofreu uma campanha de intimidação pelas redes sociais só por ter seu nome aventado. Viu logo que era uma roubada.
O bem comportado coral mórmon que tradicionalmente canta o hino nacional nas posses e as Rockettes de Nova York, dançarinas de pernas de fora que fazem shows deliciosamente bregas e foram convidadas para uma apresentação, sofreram baixas de integrantes inconformadas em fazer figuração para Trump.
Em lugar de diminuir ou dar uma trégua, em nome dos rituais da democracia, a oposição a Trump parece ter aumentado desde sua eleição. O governo do sempre elegante Barack Obama perdeu a classe e tomou a dianteira no clima de hostilidade.
Como um adolescente que faz pirraça na falta de outras alternativas, Obama está diminuindo a própria estatura com provocações de última hora. O voto contra Israel no Conselho de Segurança da ONU e a expulsão de “diplomatas” russos em represália à espionagem eletrônica são assuntos sérios demais para serem acionados no apagar das luzes.
O ambiente político americano está tão envenenado que o presidente ainda em exercício e todos os seus inúmeros partidários fazem o possível para convencer a opinião pública que a Rússia teve um papel fundamental na eleição de Trump, um exagero que, em sim, prejudica a imagem dos Estados Unidos.
Alguns jornais de esquerda estão até brigando com seu antigo ídolo, Julian Assange. Só descobriram agora que o criador do WikiLeaks, por incrível coincidência, sempre faz vazamentos que beneficiam as armações de Vladimir Putin.
A divulgação dos e-mails do Partido Democrata, feita pelo WikiLeaks via serviço secreto russo, segundo o governo americano, causou um prejuízo bastante relativo na campanha derrotada de Hillary Clinton. Mas o berreiro armado pelo governo Obama criou uma impressão, falsa, de que “hackers russos” conseguiram invadir e falsear o próprio resultado das urnas.
Trump, que não tem estatura nenhuma a perder (teria a ganhar, mas não parece interessado), contribui com seus incessantes elogios a Putin – um sujeito “muito vivo”, foi o mais recente, depois que o presidente russo decidiu magnanimamente não retribuir na mesma moeda e expulsar enviados americanos.
O tamanho exato da articulação de Putin em favor de Trump ainda está por ser revelado, se algum dia isso acontecer. Mas o quadro é tão bizarro que, hoje, centros importantes da formação de opinião de direita e esquerda nos Estados Unidos chegam a se tocar.
O site Breitbart, por exemplo, do qual saiu um dos mais importantes assessores de Trump, Steve Bannon, considerado injustamente uma besta fera da supremacia branca, publicou uma entrevista simpática com Glenn Greenwald, do site Intercept, situado no extremo ideológico oposto. O que têm em comum? Ambos desmentem enfaticamente a intervenção da inteligência russa na política americana.
Fora casos similares, que beiram a aberração, Trump chegará dentro de vinte dias à Casa Branca exatamente como entrou na campanha presidencial. Imprensa, intelectuais, acadêmicos, cientistas, artistas, políticos de um amplo leque de tendências e 65,8 milhões de americanos que votaram em Hillary acham que o presidente eleito é a pior coisa que poderia acontecer com os Estados Unidos.
Entre os 62,9 milhões que votaram em Trump (e mantiveram a maioria republicana na Câmara e no Senado), existe um clima de esperança maior nas perspectivas da economia em particular e do país em geral. Na impossibilidade de provar que é um presidente para todos, Trump terá que pelo menos não descontentar este público.