Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Mundialista Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Vilma Gryzinski
Se está no mapa, é interessante. Notícias comentadas sobre países, povos e personagens que interessam a participantes curiosos da comunidade global. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

O mundo que Rushdie criou

Como condiz a um poeta-profeta, o escritor antecipou o que viria

Por Vilma Gryzinski 20 ago 2022, 08h00

Nas linhas de abertura de Versos Satânicos, “dois homens vivos, reais e adultos caíram de uma grande altitude, 29 mil e dois pés, sem a ajuda de paraquedas ou asas”. A descrição que Salman Rushdie faz dos dois personagens, um atravessando o ar de cabeça para baixo, com o paletó do terno cinza abotoado e os braços junto ao corpo, é assustadoramente parecida com as cenas terríveis de vítimas que saltariam para a morte fugindo do incêndio provocado pelos aviões sequestrados que vararam o World Trade Center. Os personagens são atores indianos, um famosíssimo de Bollywood recém-recuperado da Doença Fantasma, outro radicado na Inglaterra, que se cruzaram por acaso no 747 sequestrado por militantes da religião sikh. A mais radical é a belíssima mulher do quarteto. É ela quem escolhe o refém que será executado, um sikh que abandonou exigências religiosas como usar sempre um turbante e não cortar o cabelo. “Apóstata traidor bastardo”, diz ela, antecipando os rótulos que seriam colados no escritor pela fatwa, a sentença de morte lavrada pelo grão-aiatolá Khomeini, o líder da revolução fundamentalista do Irã, que finalmente levou à gravíssimas punhaladas infligidas a Rushdie por um xiita de origem libanesa. O livro foi lançado em 1988, a fatwa decretada em 1989 e os atentados do 11 de Setembro, culminação ainda não ultrapassada do fanatismo fundamentalista, foram em 2001.

“Diz Mario Vargas Llosa: ‘Escrever romances é um ato de rebelião contra a realidade, contra Deus’ ”

O escritor como criador — ou Criador — de mundos, um antecipador da realidade que virá, um avatar do Divino, é um dos fundamentos mais conhecidos da literatura. Martim Vasques da Cunha reproduziu na Folha de S.Paulo um trecho da tese de doutorado de Mario Vargas Llosa, intitulada García Márquez: História de um Deicídio. Diz o seguinte: “Escrever romances é um ato de rebelião contra a realidade, contra Deus, contra essa criação de Deus que é o real. É uma tentativa de correção, mudança ou abolição da realidade real, da sua substituição por uma realidade ficcional criada pelo romancista”.

Na realidade ficcional de Rushdie, a sequestradora explode o avião sobre o Canal da Mancha e os dois personagens chegam intactos ao chão, um como um recalcitrante e insone arcanjo Gabriel, outro como seu oposto de chifres. Entre os muitos recursos do arsenal do realismo mágico, o escritor indiano cria uma vivíssima Jahilia, a cidade de areia construída em torno da Rocha Negra, a pedra divina junto à qual Adão viu quatro pilares de esmeraldas encimados por um rubi gigantesco. Nessa Meca ficcional, circula um comerciante chamado Mahound, com “fronte alta, ombros largos e cílios compridos como os de uma garota”, que prega uma estranha religião na qual existe apenas um Deus, não os 360 cujas imagens circundam a Rocha. Seus seguidores são um carregador de água, um imigrante persa e um escravo. Brevemente, para ajudar a propagar sua mensagem, Mahound aceitará a existência de três das mais poderosas deusas veneradas em Jahilia. São esses os versículos satânicos.

Continua após a publicidade

Rushdie em nenhum momento menospreza o profeta de uma das grandes religiões do mundo, mas outro dos personagens da cidade, o satirista Baal, avisa: “O trabalho do poeta é nomear o inominável, apontar fraudes, tomar partido, comprar brigas, dar forma ao mundo e impedi-lo de dormir”. Voltar um dia a impedir o mundo de dormir é a obra-prima que torcemos para que Salman Rushdie produza.

Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.