Enquanto no interior remoto do Afeganistão, distante da máscara de moderação encenada pelo Talibã, militantes radicais já proíbem meninas de ir à escola e obrigam famílias a entregar filhas acima de doze anos para se casar na marra com os guerreiros de Alá, o mundo ocidental avançado prossegue na sua própria versão do fundamentalismo.
A mais recente insanidade envolve uma colaboradora da organização governamental escocesa que promove a igualdade de gênero.
Rachel Adamson, diretora de de uma ONG chamada Tolerância Zero, considerou o clássico O Tigre que Veio Para o Chá da Tarde “problemático” por promover uma visão “antiquada” das mulheres e da dinâmica familiar.
A história escrita e ilustrada em 1968 por Judith Kerr, que fugiu com a família da Alemanha nazista para escapar da perseguição aos judeus, mostra um tigre “grande, peludo e listrado”, que toca campainha numa casa e se convida para o chá. A pequena Sofia e a mãe aceitam o convidado que come todos os petiscos, depois ataca a geladeira e até seca a água das torneiras. Quando seu pai volta do trabalho, nada restou para comer e ele leva a família a uma lanchonete. Final feliz.
A graça do ilustração e da simplicidade da história encanta crianças pequenas, que geralmente adoram personagens mal comportados. Psicólogos de botequim poderiam dizer que o tigre encarna as pulsões mais primitivas que as crianças precisam aprender a dominar, funcionando como uma válvula de escape às tensões da socialização .
Por causa da origem da autora, o tigre já foi até comparado a uma metáfora do nazismo, com um certo exagero. A própria Judith Kerr disse que sua única intenção foi distrair os dois filhos pequenos numa época em que as atividades principais eram dar uma volta e retornar para o chá da tarde. Imaginavam que alguém poderia aparecer para compartilhar a refeição, equivalente ao jantar. Apareceu aí o tigre, num deslocamento entre contexto e personagem que é uma ferramenta clássica da literatura.
Mas Rachel Adamson está mais preocupada com a estrutura familiar tradicional da história, na qual o pai resolve os problemas criados pelo felino inconveniente.
Qual a graça de ter pai se ele não for um solucionador de problemas e onde a história do tigre comilão vira um instrumento da opressão feminina?
Responde Rachel: “Sabemos que estereótipos de gênero são prejudiciais e reforçam a desigualdade de gênero, e que esta é a causa de violência contra mulheres e meninas, como violência doméstica, estupro e assédio sexual”.
Ela também acha que o tigre, indubitavelmente macho, poderia ser fêmea ou ser neutro, uma possibilidade inexistente no mundo animal.
Magnanimamente, propõe que o livro infantil não seja banido, mas sim discutido nos maternais. Aos poucos, acredita, desaparecerão as histórias onde as protagonistas são donas de casa, enfermeiras ou outras atividades estereotipadas.
O Tolerância Zero levou a sério seu trabalho e concluiu que, de três mil livros usados nas classes de maternal da Escócia, apenas 5% mostram homens e mulheres em “papéis não estereotipados”. Entre suas sugestões, incluem-se histórias com crianças trans e uma na qual um menino quer ser sereia.
Os exageros interpretativos dos clássicos infantis são conhecidos, com o príncipe da Bela Adormecida acusado de importunação sexual por beijar a princesa sem consentimento explícito (o despertar dela, obviamente, já foi comparado à primeira experiência sexual).
Nas versões contemporâneas, as princesas assumem papéis pró-ativos, são espertas e destemidas. Existe até a primeira princesa sem príncipe, Elza, de Frozen, o que já deu origem a discussões sobre sua orientação sexual.
A riqueza dos arquétipos dos clássicos infantis permite adaptações aos tempos, mantendo a força da estrutura original, tão poderosa justamente por tratar de questões cravadas no fundo da psique. As personagens femininas, por exemplo, costumam ser órfãs ou ter madrastas malvadas, substitutas convenientes das mães e das relações conflitivas delas com as filhas.
Quando a Bela amansa a Fera – e deixa de temê-la como uma força explosivamente primitiva – está reproduzindo um balé eterno entre homens e mulheres.
Será que a Disney não poderia enviar um batalhão de Belas ao Afeganistão? Não existe lugar no mundo mais necessitado do princípio feminino como fonte de amor, pacificação e cura. Talvez até o Tigre que Veio Para o Chá da Tarde pudesse proporcionar a segurança.