É certo levar crianças pequenas para ver performances de drag queens?
Shows para o público infantil ou leitura de histórias em escolas abrem mais uma frente na guerra cultural que sacode sociedades ocidentais
Extravagantes, escandalosas, escrachadas, ferinas, irônicas, abusadas, picantes, provocadoras, as drag queens formam uma escola à parte no mundo do entretenimento. Quem vai vê-las, sabe o que esperar — embora muitas sempre guardem uma surpresinha para o final.
Uma questão que está sendo muito discutida no mundo anglo-saxão, onde a guerra cultural se origina e é copiada pelo resto do planeta, é se crianças devem assistir shows com drags, uma forma de mães e pais mais progressistas para normalizar a interação entre seus filhos e pessoas do amplo espectro de gêneros.
Foi um show assim, chamado CabaBabaRave, que provocou uma grande reação na Inglaterra, levando ao encerramento do espetáculo. Cenas salvas em celulares mostram drag queens em trajes típicos de encenações do mundo sado-masoquista, com tangas minúsculas ou coletes de couro, fazendo performances acrobáticas diante de mães com bebês de colo sentadas no chão. Preço pouco camarada do ingresso: 25,50 libras, seis vezes mais em reais.
“Completamente doentio. Que tipo de mãe levaria seu filho para ver isso?”, dizia um dos comentários ao vídeo que vazou.
O desejo de criar os filhos de forma inclusiva não abrange, de forma geral, espetáculos com dançarinas de strip tease ou shows de humoristas que arrancam gargalhadas com histórias escatológicas. São encenações voltadas ao público adulto, que escolhe livremente o que quer ver.
Mães e pais podem escolher como criar seus filhos e os valores que passam a eles, mas existe um aspecto adicional nessa frente da “guerra das drag queens”: escolas da Inglaterra e dos Estados Unidos que levam as performáticas criaturas para ler histórias aos alunos.
Numa dessas ocasiões, na Ilha de Man, pais e mães de uma escola fizeram um abaixo assinado pedindo “investigação imediata” do caso em que uma drag queen palestrou para alunos na faixa de onze anos, dizendo que existem 73 gêneros diferentes. Um menino contestou a afirmação e a palestrante reclamou: “Você me aborreceu”. O aluno recebeu ordem de sair da classe.
Qualquer pessoa que procura viver uma vida sem preconceitos e com o devido respeito a todos, mas sem os exageros do lado contrário, pode ver que isso é completamente errado.
A reação foi tão grande que as autoridades educacionais da Ilha de Man suspenderam todo o programa, inclusive aulas de educação sexual em que um grupo de estudantes ouviu explicações sobre como praticar sexo oral e anal. Outro grupo foi informado sobre o processo de retirada de pele do antebraço destinada à criação de um pênis artificial para meninas que viram meninos.
É claro que a reação é proporcional, ou até mais do que isso, ao repúdio que casos desse tipo provocam. Em dezessete estados americanos, das regiões mais conservadoras, foram ou vão ser aprovados projetos de lei que proíbem performances de drag queens em propriedades públicas ou lugares que estejam nas proximidades de instituições voltadas para crianças.
Está certa esta proibição?
Num país como o Brasil, em que o Carnaval tradicionalmente dá vazão ao lado drag queen de quem quer se esbaldar se vestindo de mulher, geralmente de forma satírica, os limites são menos estritos do que no universo anglo-saxão. Homens fantasiados provocam menos espanto para nós.
Na Inglaterra, chegou a haver briga de socos na frente de um pub entre defensores da chamada Drag Queen Story Hour e manifestantes contra. Detalhe: o pub, que já havia feito uma promoção desse tipo, não tinha nada marcado.
No impagável Gaiola das Loucas, Robin Williams e Nathan Lane vivem o casal gay (queer, na linguagem moderna) que precisa fingir ser hétero para acomodar a conservadora família da noiva que vai se casar com o filho do personagem vivido pelo falecido Williams. Todo mundo sabe quanta hipocrisia é exposta e como a formidável drag de Nathan Lane nos emociona e faz rir. O filme hoje é considerado preconceituoso, embora suas lições sobre amor e tolerância estejam acima dos modismos.
É perfeitamente possível respeitar e não censurar as cintilantes criaturas que pertencem ao universo drag, um espaço não destinado a crianças.
Ou será que bom senso virou anátema?