A mulher que vai ter a tarefa nada fácil de manter Trump na linha
Susie Wiles, em posição equivalente à de uma ministra da Casa Civil, comandou a campanha que redundou em vitória categórica
“Eles não querem que eu diga isso, mas estou com vontade de dizer”, costumava provocar Donald Trump em seus comícios quando ia desferir alguns de seus absurdos preferidos.
“Eles”, no caso, era ela. Susie Wiles, uma mulher de 67 anos, avó que tem por hobby a observação de pássaros, com uma aparência singela que esconde o pulso de ferro. O que pode ser mais necessário a alguém que divide o comando da campanha presidencial de um candidato famosamente impossível de ser controlado?
Pois essa responsabilidade vai ser redobrada. Susan foi a primeira pessoa confirmada por Trump para seu futuro governo, num cargo equivalente ao de ministra da Casa Civil, função que basicamente consiste em fazer com que o governo governe, uma espécie de diretor executivo que coordena os assessores diretos do presidente, avalia a viabilidade e a legalidade de projetos e faz a ponte com os legisladores.
Se as coisas vão bem, poucos ficam sequer sabendo seu nome fora dos círculos políticos. Se vão mal, a culpa é dele – ou dela, no caso da primeira mulher que ocupará o cargo – e precisa ser demitido.
FILTRO DE BAJULADORES
No primeiro governo, Trump teve nada menos que quatro chefes de gabinete, como o cargo é chamado nos Estados Unidos. John Kelly, um general da reserva dos fuzileiros navais, saiu dizendo que tinha sido o pior emprego da sua vida – e ele comandou a invasão do Iraque.
Mais recentemente, disse que Trump correspondia à definição de fascista e que ouviu dele que Hitler “fez algumas coisas boas”. Deveria ter pedido demissão no ato, mas preferiu guardar a vingança para comê-la fria, pouco antes do 5 de novembro. Mesmo sendo uma voz de respeito, os eleitores o ignoraram solenemente.
“Susan me ajudou a alcançar uma das maiores vitórias da história americana”, disse Trump, com típica modéstia. “Ela é dura, inteligente, inovadora e universalmente admirada e respeitada”.
Também administrou uma campanha com um terço dos recursos financeiros dos democratas e uma máquina menor. “Fomos derrotados porque os conservadores e republicanos construíram um sistema de mídia diferente”, disse num desabafo que viralizou um conhecido comentarista da CNN, Van Jones. “Apostaram no mundo digital, em podcasts, em plataformas de streaming. Demos risadas dessas coisas esquisitas. Acontece que os idiotas fomos nós”.
Outro nome que vai deixar o eleitorado republicano entusiasmado: Tom Homam, para um cargo que é amplamente conhecido como Czar da Fronteira, ou seja, o encarregado das deportações em massa de imigrantes clandestinos que chegaram aos muito milhões durante o governo Biden. Muitos eleitores votaram por isso, mas são enormes as dificuldades, inclusive físicas.
Mais um problema para Susie Wiles administrar internamente: toda a legislação sobre o tema tem que ser esquadrinhada para não cair na justiça. Outro de seus requisitos obrigatórios no futuro cargo será filtrar os bajuladores que querem tirar uma lasquinha de qualquer político importante, imagine-se do homem que voltará a ocupar o cargo mais poderoso do mundo.
INEXPLICÁVEL SIMPATIA
Trump tem seguido, sem nenhuma surpresa, caminhos sinuosos no encaminhamento de seu segundo mandato. Por exemplo, Elon Musk participou da conversa que ele teve com Volodymyr Zelensky sobre um dos assuntos mais importantes do mundo, a agressão russa à Ucrânia. Todos suspeitam que ele vai acabar favorecendo Vladimir Putin, por quem nutre inexplicável simpatia. Mas num telefonema vazado, ele pediu ao líder russo que não aumente a atividade militar na Ucrânia.
Vazou também que, na conversa com Zelensky, que Trump disse: “Você vai ficar satisfeito com o que vamos fazer”.
O mais previsível seria o congelamento da atual situação no campo de batalha – o que selaria a perda dos territórios ucranianos ocupados, mas também impediria o lento e aparentemente inexorável avanço russo.
Vários analistas acham que a Ucrânia no momento está lutando puramente pela sobrevivência. Os quase mil quilômetros dessa frente, que deixa aos russos 20% do território ucraniano, seriam transformados em zona desmilitarizada e negociações de paz estabeleceriam garantias e incentivos para a Ucrânia.
Mas o que Elon Musk estava fazendo nessa conversa? Qual o papel dele, fora a rede Starlink vitalmente usada pelos militares ucranianos, num tema que envolve nada menos do que a ordem mundial vigente? Irá ele muito além da prometida – e cansativa – tarefa de cortar gastos supérfluos da máquina administrativa?
UM SOGRO NA HISTÓRIA
Outra influência que se esboça no governo. Sem Jared Kushner, o genro que teve um cargo importante no primeiro governo, juntamente com a mulher, Ivanka, Trump parece estar ouvindo uma outra voz familiar: o sogro da filha caçula, Tiffany, Massad Boulos.
O bilionário, libanês naturalizado americano que produz motocicletas e bicicletas elétricas na Nigéria, deu palpites ao co-sogro para atrair o voto dos eleitores de origem árabe que rejeitaram a candidata democrata por causa das posições de Joe Biden em relação a Israel (curiosamente, a maioria dos israelenses também torceu por Trump, enquanto os judeus americanos votaram em massa em Kamala Harris).
Como a maioria dos libaneses, Boulos é alinhado com um clã político e o dele é o dos católicos maronitas liderados por Suleiman Frangieh, do movimento Marada. Franjieh foi criado na Síria, depois do assassinato de seu pai (seu avô, com o mesmo nome dele, tinha sido presidente) e, de maneira quase enlouquecedora para quem não segue os meandros políticos e tribais do Líbano, é aliado do Hezbollah.
Ou seja, Trump está dando ouvidos, no projeto que pretende resolver os intrincadíssimos problemas do Oriente Médio “em 24 horas”, a um dos clãs libaneses cooptados pela milícia fundamentalista xiita.
Mais recentemente, foi revelado que Boulos se encontrou com o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, durante a Assembleia Geral da ONU, em setembro.
“DONZELA DE GELO”
Várias fontes israelenses disseram que Trump quer que Benjamin Netanyahu dê por encerradas as operações militares em Gaza e no Líbano antes que ele tome posse, em 20 de janeiro. Israel já desarticulou maciçamente as forças inimigas, mas é óbvio que o Hamas e o Hezbollah ainda têm capacidade de ação.
Depois de ser, erradamente, demitido como ministro da Defesa por Netanyahu, Yoav Gallant, uma voz respeitada em várias esferas em Israel, disse que já havia condições para um cessar-fogo que conduzisse à libertação dos reféns, mas nesse período de fim de mandato de Joe Biden parece difícil qualquer acordo, cuja existência precisa ser garantida pelos Estados Unidos. Mas mesmo antes da posse já houve uma vitória para Trump: o Catar vai expulsar os representantes do Hamas que vivem no ápice do luxo no emirado simpático à sua causa, mas capaz de jogar em vários campos ao mesmo tempo. Deixar o Catar tira muito da liberdade de ação da liderança do Hamas no exterior.
Se forem todos para o Irã, podem não ter um futuro muito garantido.
Entra aí a incógnita do Irã, que reiteradamente promete retaliar Israel de maneira avassaladora. Faria o Irã fazer um grande ataque no quase interinato de Biden? E como Trump lidará com um país que, comprovadamente, estava tentando assassiná-lo, como se viu com a prisão, na sexta-feira, de um ex-criminoso transformado em matador a serviço da espionagem iraniana?
Não faltarão crises, muitas imediatas – nem trabalho para Susie Wiles. Por causa da cabeça fria, ela foi apelidada “Donzela de Gelo” durante a campanha, e essa qualidade será mais necessária do que nunca.