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Em ‘Chamadas Telefônicas’, Bolaño está em seu território

Leitor voraz e detentor de conhecimentos enciclopédicos, a escrita de Bolaño foge do academicismo e agrada pela precisão, fluidez e por um quê de ironia

Por Diego Braga Norte Atualizado em 31 jul 2020, 09h21 - Publicado em 10 mar 2012, 09h34

Há obras que ganham projeção após a morte do autor. Foi o que aconteceu com o chileno Roberto Bolaño, cujo livro de contos Chamadas Telefônicas (tradução de Eduardo Brandão, 216 páginas, 39 reais), acaba de ser lançado no país pela Companhia das Letras. Mesmo que Bolaño já fosse um autor respeitado, é inegável que o fascínio pela sua obra (e sua figura) cresceu muito após sua morte, em 2003. O Brasil, mesmo, só recebeu os livros do escritor depois disso.

Chamadas Telefônicas, publicado originalmente na Espanha, em 1997, reúne contos sobre temas caros ao autor: vidas de escritores, personagens que não conseguem se ajustar à realidade, violência urbana e muitas passagens autobiográficas. Ao longo de catorze histórias, temos Bolaño pisando em seu próprio território. Ou seja, andando por diversos países e mesclando diferentes temas. Os contos, alguns de final surpreendente, percorrem um trajeto peripatético pelo mundo afora, refletindo a própria biografia do autor.

Nascido no Chile, Bolaño se mudou para o México ainda criança, acompanhando os pais. Em 1973, aos 20 anos, regressou a território chileno empolgado com a vitória eleitoral do presidente Salvador Allende. No ano seguinte, os militares deram o golpe de estado e Allende se suicidou, dando início a um período de agitações no país. Envolvido nas manifestações contra o golpe, Bolaño foi para a prisão, de onde escapou ao ser reconhecido por um amigo da primeira infância, agora fardado. Livre, voltou para o México, onde passou apenas um ano, porque, em 1974, se jogou no mundo. Foi para a Europa, morou um pouco na França, viajou por diversos países – não se sabe ao certo por onde andou – e firmou-se, em 1978, na Espanha, firmando residência ora em Barcelona ora Girona e ora nos arredores da Costa Brava catalã, não necessariamente nessa ordem.

Entrementes, viajou também pela África e, talvez, pelo Oriente Médio. O ato final da epopeia foi agonizante. Na Espanha, passou dez dias em coma num hospital, à espera de um novo fígado. Morreu em 14 de julho de 2003, aos 50 anos, vítima de uma insuficiência hepática agravada pelo consumo, por vezes excessivo, de álcool.

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Nos contos do escritor, as andanças pelo mundo, os personagens cosmopolitas, as desilusões da vida, as marcas das ditaduras nos exilados e as errantes vidas literárias de escritores e poetas são temáticas que trazem à tona as veias abertas da América Latina, com toda a carga de tragédias e lirismo que a expressão carrega.

Leitor voraz e detentor de conhecimentos literários enciclopédicos, a escrita de Bolaño foge do academicismo e agrada pela precisão, fluidez e por um quê de ironia que permeia praticamente todas as suas histórias, mesmo as mais trágicas. Influenciado por Jorge Luis Borges e Júlio Cortázar, Bolaño influenciou os também argentinos Alan Pauls (autor de O Passado) e Rodrigo Fresán, (de Jardins de Kensington), entre outros prosadores de língua castelhana espalhados entre a Terra do Fogo e os muros de Tijuana.

Num dos contos, o escritor narra, com forte influência autobiográfica, a rotina do escritor latino-americano Sensini, que tenta viver de sua própria pena. Para isso, Sensini passa a inscrever suas novelas em “prêmios búfalos”, que o “escritor pele-vermelha” tinha que caçar, “pois nisso estava em jogo sua vida”.

Curiosamente, o conto acaba narrando o processo de escrita de outro livro de Bolaño. Lançado aqui no país no ano passado, Monsieur Pain (tradução de Eduardo Brandão, Companhia das Letras, 144 páginas, 34 reais) é justamente a novela premiada que o alter-ego Sensini escreve ao longo do conto. O fato é confessado por Bolaño no prefácio do livro, uma breve novela que se passa em Paris, no ano de 1938.

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Na história, Pierre Pain é um mesmerista, espécie de curandeiro urbano seguidor de Franz Mesmer – médico alemão que inventou o mesmerismo, “ciência” que fazia uso de técnicas semelhantes à hipnose para tratar os doentes. Pain – o nome “dor” (em inglês) não é aleatório – nutre uma paixão não correspondida por Madame Reynaud. Chamado por ela para curar o marido de uma amiga, o senhor Vallejo, Monsieur Pain envereda por uma teia de suspeitíssimos jogos de sombras, perseguições e mistérios.

A novela, não por acaso, traz um trecho de Edgar Allan Poe na epígrafe. O excerto, que termina com a intrigante indagação “Mas onde está o princípio?”, é um diálogo extraído do conto A Revelação Mesmérica. A questão sobre a origem das coisas e casos acaba perpassando todo o romance, pois, assim como o personagem (o título é escrito em primeira pessoa), nós não sabemos onde começou o mistério todo que cerca o tratamento do senhor Vallejo, enfermo aprisionado em um hospital labiríntico. E, de pano de fundo da história, ainda temos uma França prestes a entrar em guerra com a Alemanha, temendo a perigosa ascensão do nazismo.

O escritor espanhol Javier Cercas (de Soldados de Salamina) disse uma vez que Bolaño é “mais real que a realidade”. Também chamado de “ultrarrealista”, o chileno criou em prosa um universo literário que se sobrepõe e se desdobra em seus diversos livros, configurando uma obra que se confunde com a própria vida, seja pela lucidez que cega ou pela tragédia que a acompanha.

Relembrando suas peripécias de autor iniciante na Espanha, Bolaño escreve no prefácio de Monsieur Pain que “nunca como naquela época” se sentiu “mais orgulhoso e mais infeliz por ser escritor”. Comparando a velocidade e intensidade de sua vida com o tempo que sua obra levou para ser reconhecida, fica fácil entender sua tristeza.

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