O que pensa um ex-presidente da OAB sobre este ano eleitoral
Quem desfruta do Estado de Direito tem o dever de defendê-lo, diz em artigo o advogado Marcus Vinicius Coêlho, líder da entidade de 2013 a 2016
Em artigo enviado com à coluna, o advogado Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente nacional da OAB e atual presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da entidade, observa que “a aproximação das eleições gerais tem sido acompanhada por uma nova onda de desinformação, fake news e ameaças à Justiça Eleitoral” e que todos que vivem no país “desfrutando da vida em democracia” têm obrigações, sendo a principal delas “a defesa implacável do Estado de Direito e da participação na condução do país por meio do voto direto, secreto e universal”.
Abaixo, a íntegra do artigo:
Defender a Constituição é garantir a democracia
A Carta Cidadã de 1988, referência mundial em proteção aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, é celebrada no 25 de Março, escolhido como Dia da Constituição. A data é oportuna para lembrarmos o processo constituinte, iniciado em 1987 e que se apresentou como uma grande oportunidade histórica de construir um projeto de nação democrático e plural, com vistas a consolidar a redemocratização do país após décadas de regime militar.
A promulgação da Constituição de 88 é um marco na história política e constitucional brasileira: no âmbito político, ela consolida a transição do regime militar para o regime democrático e, no âmbito jurídico, é a Carta mais abrangente de nossa história em termos de direitos e garantias fundamentais.
Este ano eleitoral pede especial reforço às obrigações dos cidadãos que desfrutam da vida em democracia. A principal delas é a defesa implacável do Estado de Direito e da participação na condução do país por meio do voto direto, secreto e universal. A aproximação das eleições gerais tem sido acompanhada por uma nova onda de desinformação, “fake news” e ameaças à Justiça Eleitoral – que tanto tem diligenciado para a consecução de pleitos limpos e justos. Ataques ao sistema eleitoral, contudo, nada mais são do que a antessala de assédios mais vigorosos contra as bases da cidadania.
Esse cenário nos convida a valorizar as lutas democráticas encampadas pelas gerações anteriores, que batalharam por direitos e liberdade, às custas, por vezes, da sua própria vida. O momento pede reflexão e cautela de todos e cada um de nós para não disseminar e denunciar a disseminação de notícias falsas ou injuriosas, que estimulam a destruição das conquistas democráticas e desrespeitam todo o empenho engendrado na história constitucional do país.
Percorremos um longo caminho até chegar ao estágio atual da cidadania no Brasil. Nossa primeira Constituição, de 1824, consolidou a independência em relação a Portugal e delimitou as ações do monarca, Dom Pedro I – mesmo que usando normas outorgadas por ele próprio. Esses limites são o motivo pelo qual autocratas de todos os tipos e todas as épocas, inclusive a atual, têm ojeriza às constituições.
Desde então, a Lei Maior se tornou central nos grandes embates nacionais. Tanto que nossa segunda Carta, promulgada em 1891, demarca o fim do império e o início da república. A terceira, de 1934, resulta da guerra civil de 1932. A quarta, de 1937, teve inspiração fascista e marcou o início do Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas. A quinta Constituição brasileira é de 1946, democrática, e vigorou até ser derrubada em 1967, junto com a democracia, pela ditadura militar.
Nos anos 1980, após muita luta, a democracia brilhou novamente e impulsionou um “renascimento legal”. A aprovação do novo texto, que contou com uma gênese profundamente democrática e marcada pela ativa participação de atores sociais diversos, representou uma ruptura com a ordem autoritária anterior e a implantação de um projeto de Estado Democrático de Direito, comprometido com a garantia de direitos fundamentais e com o ideal de justiça social. Presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães explicou a nova Constituição como “a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança” e sentenciou: “Que a promulgação seja nosso grito: muda para vencer! Muda, Brasil!”.
A frase é válida para o momento atual, em que manifestações oportunistas contra a separação e a independência dos Poderes surgem na esteira das crises políticas, da desaceleração econômica e da tragédia da Covid-19. Muda, Brasil! Que façamos valer a Constituição Federal. Para isso, o compromisso de cada brasileira e brasileiro é fundamental.
Defender a Constituição é garantir o primado do Direito sobre o arbítrio, da dignidade humana sobre a barbárie, a salvaguarda da democracia contra o autoritarismo. Pretender, de qualquer forma, reduzir ou esvaziar a Carta Constitucional significa pôr em risco as garantias e direitos fundamentais historicamente conquistados pelos cidadãos brasileiros. Como já lembrava o poeta Drummond: “Os lírios não nascem das leis”. A Constituição e o Estado democrático de Direito são o resultado de nossas ações, enquanto sociedade e enquanto instituições que construímos e preservamos cotidianamente.
Após mais de 30 anos, a frase de Ulysses segue atual. A Carta sobreviveu a crises de diversas origens, transmitindo a segurança de que encontraremos nela as soluções para os obstáculos que se impõem ao país. Como ensinou o constitucionalista Paulo Bonavides, “a Constituição de 1988, ao revés do que dizem os seus inimigos, foi a melhor das Constituições brasileiras de todas as nossas épocas constitucionais”. Nossa obrigação é preservá-la, junto com a história e os sacrifícios dos que vieram antes de nós.
* Marcus Vinicius Furtado Coêlho, advogado, é presidente da Comissão de Estudos Constitucionais e ex-presidente nacional da OAB (2013-2016)