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Múltiplas personalidades? Entenda o transtorno dissociativo da identidade

Tema recorrente em séries e filmes, condição é rara e fruto de traumas. Psiquiatra desmistifica o quadro e aborda formas de enfrentá-lo e contorná-lo

Por Alexandre Valverde*
Atualizado em 10 ago 2023, 10h01 - Publicado em 10 ago 2023, 10h00

Quantos “eus” cabem em uma pessoa? Como alguém pode perder a noção de quem ela é, se multiplicar em uma miríade de personas e passar a agir, sentir, pensar, falar e se comportar de maneira distinta para cada uma delas?

Cada vez mais temas de psiquiatria geram interesse do público, a perceber pela quantidade de produções culturais que discorrem sobre os mais diversos ângulos dos sofrimentos mentais. A pergunta sobre nossos “eus” tem a ver com as questões que envolvem o que, anteriormente, denominava-se transtorno de múltiplas personalidades e que, atualmente, recebe a alcunha de transtorno dissociativo da identidade (TDI).

Antes de tudo, como entendemos isso que chamamos de “eu”? Na nossa experiência comum, cotidiana, tendemos a pensar que o eu é algo que dura no tempo, que persiste sempre o mesmo e que, exatamente por isso, poderia ser entendido como uma unidade, algo apreensível, que pudéssemos pegar com a mão e dizer: esse é o nosso ponto de partida, nosso zero da régua, o lugar a partir do qual cada um de nós se constitui.

O eu, porém, é uma função. O que queremos dizer com isso? Que somos resultado de uma equação matemática? Não. Dizer que nosso eu é uma função significa dizer que muitos outros processos têm de acontecer para que o funcionamento dessa estrutura, o “eu”, ocorra e funcione.

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Todas as áreas de nossos cérebros precisam estar operando em harmonia para que as experiências que vivemos, nossas memórias, nossos afetos, nossas percepções, nossas habilidades possam acontecer de maneira integrada, sendo resultado e resultando no complexo funcionamento dessa estrutura que resumimos diariamente pela palavra “eu”. Nosso eu não é uma garantia, mas uma contingência.

Experiências traumáticas na infância, por violência e abuso, ou perdas e lutos importantes, que podem ser únicas, ou ainda repetitivas, podem levar a respostas emocionais tão intensas que desencadeiam um tipo de reação que chamamos de dissociação.

Nas dissociações podemos experimentar uma perda da noção de si mesmo (despersonalização), perda de noção do ambiente (desrealização) e prejuízo na fixação e recordação dos eventos da memória traumática. Considera-se que seja como resultado dessas ocasiões que uma segunda identidade (ou terceira, quarta, e assim sucessivamente) passa a surgir e a organizar a experiência de trauma que aquela pessoa está vivendo.

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Como se essa segunda identidade fosse repositório do sofrimento e da história de abuso que a primeira identidade não consegue integrar na sua vida. As repetições dos traumas podem fragmentar ainda mais o eu: assim, cada uma das personas passa a atuar em momentos diferentes, gerando ainda novas identidades, que podem chegar a ser dezenas delas. Mulheres com TDI costumam apresentar duas vezes mais identidades que homens com o transtorno.

+ LEIA TAMBÉM: Psicóloga prescreve anticorpos emocionais contra traumas

Muitos “eus”

Se nosso eu fosse uma bolha de sabão, no momento de um trauma, um choque, essa bolha poderia se romper completamente. Estaríamos diante de uma psicose: a ausência de eu.

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Na dissociação, essa bolha não explodiria, mas se dividiria em duas, três ou mais partes, cada uma delas cumprindo todas as funções de um eu, com história, características de personalidade, jeito de falar, gostos, preferências, idade, sexo, língua, sotaque, nacionalidades diferentes.

Essas partes geralmente não reconhecem ações feitas pela outra, e tendem a esquecer completamente o que e como a outra identidade faz, pensa e age. Podem inclusive apresentar doenças específicas próprias, tanto mentais como físicas, chegando a ponto de haver uma identidade que necessita usar óculos para correção de grau e outra, não.

O reconhecimento dessa condição, complexa e rara, é feita por profissionais especializados e demanda um tratamento que inclui farmacoterapia para as condições psiquiátricas associadas, como depressão e ansiedade, mas principalmente psicoterapia para realizar o que se chama de integração dessas identidades, além de procurar evitar que a pessoa se exponha novamente a situações de risco, abuso e violência.

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Isso é crítico no âmbito da infância: crianças acostumadas com violência em casa tendem a normalizar esse comportamento na vida adulta e persistem em relações com pessoas abusadoras por se sentirem em ambiente familiar em meio a elas.

Exatamente por essa questão, falar sobre as consequências dos abusos é importantíssimo num país tão violento quanto o nosso. Vivemos nos últimos anos uma escalada da violência nos domínios privado e público. A pandemia intensificou essa tendência.

Ostentamos tristemente recordes de violência doméstica, feminicídio, estupro de crianças, crimes de ódio, negligências e omissões parentais, além da violência institucional, das perseguições às populações minorizadas e marginalizadas, e de um sistema policial e jurídico punitivistas, que perpetram ainda mais violência.

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Estaremos vendo daqui dez ou quinze anos o aumento na incidência desses transtornos dissociativos complexos, resultado deste triste momento histórico em que a violência se tornou, cada vez mais, linguagem comum entre as pessoas?

Conduzir o mundo para um ambiente de menor violência e maior acolhimento às vítimas de abuso é uma necessidade e um desafio maior da nossa sociedade. Conseguiremos fazer do futuro algo novo ou apenas uma repetição do passado? Como ficarão nossos “eus”?

* Alexandre Valverde é psiquiatra, mestre em filosofia contemporânea, autor do livro Ruptura, Solidão e Desordem (FAP-Unifesp) e apresentador do podcast Fractais, sobre temas da neurodivergência

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