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Hereditariedade do câncer de mama: o papel de Paul Broca

Há mais de 100 anos, Paul Broca, um dos maiores gênios da medicina, concluiu que o câncer de mama pode ter um caráter hereditário

Por Bernardo Garicochea
6 abr 2017, 12h52

A foto, tirada por volta de 1880 pelo retratista mais ilustre de Paris, Nadar, é uma obra-prima. O senhor que nos olha apresenta costeletas desgrenhadas e volumosas e cabelo muito ralo, disposto de forma bizarra no alto da cabeça, tornando a fronte ainda mais proeminente, o que acentua um olhar agudo, irrequieto: obviamente trata-se de um homem de movimento, possivelmente inundado de ideias enquanto aguardava irritadiçamente o lento processo de impressão na placa de prata dos primórdios da fotografia e, bem com pouco tempo, para perder com asseio pessoal.

Paul Broca, um dos maiores gênios da medicina, foi imortalizado com esta foto antes de morrer prematuramente, aos 56 anos. Uma vida curta, mas absolutamente fascinante. Ele é parte dos poucos membros de nossa espécie que são incondicionalmente aclamados como gênios durante a vida e que a fama só fez crescer na posteridade. Ele fez contribuições fundamentais para a neurologia (descobriu a área da fala, no cérebro), oncologia, psicologia, patologia e teve tempo e energia para fundar a Sociedade Francesa de Antropologia.

Talvez se não fosse um cérebro tão disciplinado e privilegiado para observar padrões na natureza, destes que passam à nossa frente despercebidos todos os dias, a descoberta que o câncer de mama tem uma forte relação com hereditariedade tivesse que esperar mais um século. E ele fez esta descoberta motivado por uma história bem desagradável.

Caso familiar

A sua esposa estava morrendo de câncer de mama aos 36 anos, em 1866, quando ele publicou um trabalho científico em que demonstrava que em seis gerações da família da esposa, 15 em 30 mulheres morreram de câncer de mama e quatro de câncer de fígado. É uma das árvores genealógicas mais extensas de câncer descritas até o início do século XX. E nos conta muitas histórias.

Uma delas está testemunhada nas cartas de Broca a colegas do Hospital Bicetre, em Paris, descrevendo o sofrimento excruciante da esposa, em uma época sem analgésicos minimamente decentes, e em que centros cirúrgicos lembravam mais sucursais de açougues – a anestesia tinha sido inventada poucas décadas antes e ainda engatinhava na metade do século XIX. Sem quimioterapia, sem radioterapia, sem hormonioterapia.

Qualquer unidade de saúde no Brasil hoje, por mais precária ou remota que seja, fornece medicina infinitamente melhor do que as pessoas mais ricas ou famosas, da cidade mais importante do mundo poderiam receber em 1866. Não surpreende que o personagem de Woody Allen abandona relutantemente seus heróis, os grandes artistas que viviam em Paris nos anos 1920, para retornar ao seu tempo, no século XXI, que ele tanto despreza pela vulgaridade, pois é impensável viver sem antibióticos e anestesia dentária.

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Broca, ao perceber que familiares da esposa se referiam com alguma insistência a outros casos semelhantes de câncer de mama em parentes jovens, coletou meticulosamente estas informações: tipos de câncer, graus de parentesco, idade. E, descontando a grande quantidade de pessoas que morriam na infância ou juventude, coisa comum na época, percebeu que a proporção de casos de câncer de mama nesta família era assombrosa. Além disso, havia uma clara transmissão direta entre estes familiares para seus descendentes. Ele concluiu o seu trabalho afirmando que câncer de mama era uma doença com transmissão familiar, o que ele chamou de atavismo (o termo hereditário ainda não era utilizado).

Felizmente, casos como os da esposa de Broca são muito raros, mesmo hoje em dia, em que se vive muito mais e que os diagnósticos são muito mais confiáveis. Mas a conclusão dele segue incontestável.

Hereditariedade é rara

Do que sabemos hoje, em cerca de 10% dos casos de câncer de mama há a presença de genes doentes que podem ser transmitidos entre gerações, tanto pelo pai como pela mãe. Há um número bem maior de casos em que a hereditariedade é mais sutil e complexa, portanto, menos previsível. No nosso estágio de conhecimento atual, já conseguimos identificar com muita precisão a vasta maioria destes genes de câncer de mama (e são vários, acredite) por meio de um exame feito no sangue ou na saliva. Encontrado o gene defeituoso, pode-se estimar que outros tipos de câncer esta família corre mais risco de apresentar.

O risco pode ser reduzido

Pode-se também descobrir quais são exatamente as pessoas da família que têm o mesmo gene defeituoso e – aí vem a melhor parte – o que fazer para proteger estes portadores. No caso de câncer de mama, mesmo pessoas com mutações muito graves, como a da esposa de Paul Broca, conseguem reduzir seu risco de câncer de mama de 90% para 5% a 10%. Claro, com o bônus de que quase todos estes poucos tumores serão descobertos em etapas tão iniciais, que virtualmente todas as pacientes que seguirem estas medidas de prevenção vão se curar.

É um paradoxo: mulheres que sabem que têm genes para câncer de mama passam a ter muito menos chance de morrer de câncer de mama do que qualquer mulher da população geral que não tem genes para câncer.

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A capacidade analítica de Broca, mesmo no auge da angústia da perda que experimentava, nos iluminou, mais de 100 anos depois, para que produzíssemos conhecimento suficiente que resultou em prevenção e cura. E a esposa de Paul Broca, sabendo da sua ancestralidade para câncer, teria feito seu teste genético e teria sido protegida do desfecho triste desta história, muito provavelmente.

 

Bernardo Garicochea

 

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