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Informação e análise
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Um roubo cinematográfico no banco dos doleiros paraguaios

É quase um crime perfeito, onde a vítima não pode denunciar sem se comprometer criminalmente. Na vida real, é como um roubo à máfia, com riscos imagináveis

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 8 fev 2024, 08h00

A cidade estava em festa. Foi um fim de semana raro na margem do rio Paraná, do outro lado da Ponte da Amizade. Comércio fechado, bandas em desfile, cultos nas igrejas, shows, ruas e restaurantes lotados num fim de semana de celebração dos 67 anos de Ciudad Del Este.

O governo decretou feriado no último sábado, dia 3, data oficial de fundação da antiga Flor de Lis, primeiro nome do aglomerado urbano que se tornou o grande centro comercial da tríplice fronteira do Brasil com o Paraguai e a Argentina.

À tarde, faltou luz em alguns bairros. Na concessionária, Ande, atestou-se anomalia na rede subterrânea de energia. Passaram-se quase 20 horas até a localização da origem do defeito. A equipe técnica registrou a estranha ocorrência de cabos cortados e transformador subterrâneo esvaziado, sem óleo necessário ao funcionamento.

Explosões de fogos de artifício animou a paisagem noturna dos que estavam sem luz. O domingo (4/2) foi de ressaca, com apenas parte do comércio funcionando para atender turistas e varejistas brasileiros.

Na segunda-feira (5), quando a antiga Flor de Lis voltou à rotina, houve agitação na sede da Associação dos Trabalhadores Cambistas (ATC), uma espécie de banco central dos doleiros da região da tríplice fronteira. Funcionários encontraram 180 cofres arrombados com furadeiras. Simplesmente, desaparecera o dinheiro que irriga as artérias dolarizadas do comércio de produtos importados — alguns lícitos, outros nem tanto.

Começou, então, uma investigação inédita e tortuosa. O arrombamento exigiu tempo e fez barulho, colocaram isolantes nas paredes. Se ruídos escaparam, foram encobertos pelos fogos de artifício no céu da cidade em festa.

Havia um buraco no piso, mas era difícil saber onde começava. Policiais encontraram imagens de câmeras de rua mostrando uma dúzia de homens saindo de um prédio em frente ao banco informal dos doleiros. O relógio marcava 1h41 de segunda-feira. Em seguida, recolheram camisetas esportivas sujas de bairro em latas de lixo da vizinhança.

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No prédio em frente, do outro lado da avenida Camilo Recalde, havia uma loja de roupas esportivas e camisetas parecidas às encontradas no lixo. Curiosamente, estava fechada em plena segunda-feira. Aberta, investigadores seguiram as pistas do barro espalhado no chão, acharam parte do piso removido e um buraco. Era a boca de um túnel atravessando a rua e a larga rodovia PY 02, que liga a cidade à capital Assunção (200 km de distância).

Da loja dava para ver a sede do banco dos doleiros. A documentação informava ter sido alugada no sábado 11 de novembro de 2022 por brasileiros, a 2.500 reais por mês. Um deles, identificado pelo apelido “Gordinho”, passava os dias dividindo o balcão com um paraguaio, Fabricio Jhonatan Álvarez Ayala. Eram jovens, na faixa dos 25 anos de idade.

Vieram especialistas. Parte dedicou-se à coleta de impressões digitais — dez conjuntos de pessoas diferentes, para alegria dos papiloscopistas, logo repassadas à polícia brasileira.

Outros desceram no túnel. Estreito, quase um metro de largura, em pura lama, ar rafeito, insuportável sem tubos portáteis de oxigênio. Nos primeiros metros, escavação em zigue-zague e sem sinal para instrumentos de localização (GPS). Visível na lama, rolos de pavio, dinamite em gel, detonadores, e dois aparelhos de intercomunicação.

Parou tudo. Evacuação na loja, no banco dos doleiros, nos prédios e casas vizinhas — numa delas, vazia, foram encontradas ferramentas de escavação e apetrechos usados em explosões subterrâneas. Peritos em explosivos foram convocados. Quando liberaram o caminho, chegaram os geólogos.

Foram necessárias duas horas e quarenta minutos de expedição dentro do túnel para chegar à saída, a boca do outro lado da rua. A dificuldade foi pela escavação em zigue-zague e não em linha reta, como é costumeiro nesses casos.

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Na superfície, procuravam-se os suspeitos de sempre. Um deles, o paraguaio Néstor Ariel Palma, foi levado à delegacia. Tinha ficha de condenado por apoio logístico à quadrilha brasileira que em 2017 assaltou a central da Prosegur, empresa de transporte de valores de Ciudad del Este. Roubo estimado de 11 milhões de dólares (55 milhões de reais) bem menos sofisticado, ao estilo faroeste, como os das quadrilhas do “novo cangaço” que atormentam cidades interioranas no Brasil.

O caso teve as digitais do PCC, que domina prisões e controla rotas de contrabando nos ponto-chave da fronteira Brasil-Paraguai. Ariel Palma foi interrogado por horas. Depois, liberado. Nada o vinculava à cena do crime nos cofres dos doleiros.

Ninguém sabe exatamente quanto os ladrões levaram. Estimativas informais dos próprios doleiros começam em 40 milhões de dólares (200 milhões de reais). A polícia investiga “de ofício”, ou seja, por interesse público, já que os cambistas relutam em formalizar a denúncia.

O mais provável é que jamais se saiba o valor real do roubo, dizem dirigentes do banco dos doleiros. A maioria deles operava no mercado paralelo e não se atreveria a denunciar porque enfrentaria problemas de outra natureza — com a Receita paraguaia e brasileira. Lá estavam, também, segredos contábeis da rotina de transações no submundo da fronteira. E documentos valiosos para muitos, em vários países.

Em tese, é quase um crime perfeito, onde a vítima não pode dizer nada sem se comprometer criminalmente. Na vida real, é como um roubo à máfia. Com todos os riscos imagináveis de um acerto de contas no submundo. Mas não deixa de ser uma proeza cinematográfica: foram 14 meses de paciente escavação de um túnel em zigue-zague, avançando à média de 10 metros por mês, sob uma avenida e uma rodovia até a sala-forte do banco dos doleiros. Um enigma de engenharia e geologia a ser desvendado na antiga Flor de Lis, próspera Ciudad del Este, na tumultuada e perigosa tríplice fronteira.

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