Torres não fala, mas ajuda a investigar o fiasco bolsonarista
O ex-ministro da Justiça Anderson Torres enfrenta várias acusações, nenhuma por suposto crime de ingenuidade. Seu acordo de cooperação é prova eloquente
Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, começou a colaborar com a polícia na investigação sobre a organização da tentativa de golpe de estado.
Ele escolheu uma rota alternativa para cooperação judicial, depois de mais de cem dias de prisão em Brasília. Em vez de depor, como prevê o rito dos acordos de delação premiada, resolveu entregar ao Ministério Público a chave de acesso à documentação privada que mantém em serviços de armazenamento na internet. Além disso, liberou aos investigadores seu sigilo bancário, fiscal e telefônico.
Aos 46 anos, metade na carreira policial agora interrompida, o delegado federal Torres enfrenta várias acusações, nenhuma por suposto crime de ingenuidade. Seu acordo com o Ministério Público é prova eloquente.
Ao recusar a delação premiada, o ex-ministro de Bolsonaro tentar contornar críticas de antigos parceiros políticos, que poderiam qualificá-lo como delator — dedo-duro, na gíria policialesca.
No processo poderá alegar que, apesar de não ter colaborado com depoimento formal, facilitou à Justiça a obtenção de provas em “boa-fé”, sem reivindicar ou obter proveito disso.
Para a Justiça, não existe depoimento que, isoladamente, sirva como prova. Torres está entregando provas, aparentemente com a certeza de que não devem incriminá-lo.
Pela experiência policial acumulada, seria natural que guardasse documentos, anotações e correspondência sobre circunstâncias, fatos e personagens agora percebidos como relevantes para investigação.
Seguiu essa lógica, por exemplo, na guarda da “minuta do golpe”, rascunho de decreto presidencial com o objetivo de mudar o resultado da eleição presidencial de outubro. Ela foi encontrada na sua casa, durante revista policial autorizada, dentro de uma pasta reservada a registros da vida familiar.
Torres é investigado por conivência, “associação criminosa”, na definição do juiz Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em “gravíssimos crimes” com o objetivo de “destruir o Estado Democrático”. Moraes considera “exigível a responsabilização” de todos os participantes – “por ação ou omissão”.
Na quinta-feira passada (20), rejeitou um pedido de liberdade provisória do ex-ministro de Bolsonaro, que era secretário de Segurança Pública do Distrito Federal no dia dos ataques ao ST, Congresso e Palácio do Planalto.
Naquele domingo, 8 de janeiro, a Secretaria de Segurança estava acéfala. Com uma semana no cargo, Torres antecipou férias e viajou a Miami (EUA), onde se reuniria com Bolsonaro.
Moraes manteve a prisão baseando-se em “depoimentos de testemunhas e apreensão de documentos que apontam fortes indícios da participação [de Torres] na elaboração de uma suposta ‘minuta golpista’ e em uma ‘operação golpista’ da Polícia Rodoviária Federal para tentar subverter a legítima participação popular no segundo turno das eleições presidenciais”.
Indicou, também, “sua conduta omissiva quanto à permanência do acampamento dos manifestantes no Setor Militar Urbano e o risco daí gerado – que culminou nos fatídicos atos” do 8 de janeiro.
Acrescentou “seu possível envolvimento na autorização para mais de cem ônibus” que, naquele final de semana, transportaram mais de 1.500 ativistas de vários Estados até o acampamento montado na frente do Quartel-General do Exército, em Brasília.
O ex-ministro de Bolsonaro tem vaga garantida na fila de depoimentos da CPMI do Golpe, cujo início está marcado para amanhã no Congresso. Terá direito ao silêncio, como qualquer outro convocado. Mas seus arquivos pessoais, decifrados nessa cooperação judicial, devem ser úteis à investigação legislativa sobre o fiasco do radicalismo bolsonarista.