La La Land já vai a caminho dos 350 milhões de dólares na bilheteria global, o que é uma façanha para uma produção que custou 30 milhões (pouco, em Hollywood) e é um musical. As quatorze indicações ao Oscar foram um impulso decisivo, claro. E ainda bem que o filme do diretor Damien Chazelle aproveitou essa onda. Porque, na hora que ela quebrar, na cerimônia de premiação deste domingo, é possível que ele tome um caldo daqueles. Nas bolsas de apostas, um outro concorrente começou a despontar como favorito – Moonlight, um minúsculo Davi que tem oito indicações (está forte em todas) e vem juntando forças para bater o Golias de Chazelle. Se La La Land é barato, Moonlight é baratíssimo; custou 5 milhões de dólares. Seu alcance na bilheteria também é muito menor; ele acumulou algo como 22 milhões até aqui – somando todos os países em que já foi lançado. Mas a influência de Moonlight, essa vem atingindo uma dimensão surpreendente.
O que o diretor Barry Jenkins fez é uma façanha muito mais desafiadora do que reviver o interesse do público pelo musical – é atrair a atenção da plateia (e despertar nela sentimentos profundos, ou até marcantes) para um personagem menosprezado: um garoto negro, pobre, homossexual e filho de mãe viciada criado em um gueto decrépito de Miami, que mal fala meia dúzia de frases durante o filme. E, no entanto, há mais poesia aí do que em qualquer número musical de La La Land: a razão pela qual Moonlight está se tornando um fenômeno cultural é justamente o tratamento inesperado que Barry Jenkins dá a essa matéria-prima. Em vez de ir pela trilha do realismo social, Jenkins recria o mundo pelos olhos e pelas sensações do protagonista, com a mesma percepção informe – mas aguda – que ele tem das suas circunstâncias. É muito mais difícil do que parece, só que Jenkins tem um instinto infalível para a simplicidade: para frear o excesso, o drama e a sentimentalização, e optar em vez disso por um desenho solto para cada cena, que reproduz no espectador a desorientação ou, às vezes, o deslumbre que o calado e arredio Chiron experimenta. Às vezes, quando a situação é insuportável para Chiron – por exemplo, quando sua mãe berra com ele sem parar –, Jenkins abole todo o som da cena e a submerge na Laudate Dominum, uma ária sublime de Mozart. O efeito é extraordinário: imediatamente, aquela deixa de ser uma tragédia só de Chiron para se tornar uma tragédia ininterrupta da humanidade.
Quando bem usado, claro, o realismo pode ser uma ferramenta eficaz para tratar de personagens como Chiron. Um ótimo exemplo? Preciosa, no qual Gabourey Sidibe dá um show como a adolescente obesa, abusada e analfabeta do título. Mas isto aqui são outros quinhentos: Moonlight é uma viagem sem destino certo e sem mapa a seguir. É feito de forma a que a plateia se perca no mundo de Chiron, junto com ele. O filme é dividido em três capítulos, e o primeiro deles, em particular, é uma joia: é o capítulo em que Chiron (Alex R. Hibbert), sistematicamente espancando pelos colegas de escola, que intuem sua homossexualidade, e invariavelmente negligenciado ou acossado pela mãe viciada (Naomie Harris), deixa que o traficante local de Liberty City – o gueto onde também o diretor Barry Jenkins e o autor da história, Tarell Alvin McCraney, foram criados – se aproxime dele. Juan, magnificamente interpretado por Mahershala Ali, é uma figura rara no meio de Chiron: uma figura masculina generosa, protetora e sobretudo presente. Juan, porém, sabe que ninguém vive até idades avançadas na sua profissão, e que não estará sempre ali para o garoto. Então é preciso que o tempo conte – e a cena em que ele leva Chiron à praia pela primeira vez e o ampara enquanto ele bóia, e então o ensina a nadar e a seguir sozinho na água, é das coisas mais lindas que eu já vi.
Moonlight continua acompanhando Chiron em um momento-chave de sua adolescência (o segundo capítulo), e em um par de dias cruciais da sua juventude (o terceiro). Em todos os três capítulos, um momento de dádiva ou pureza desponta em meio ao massacre de identidade que é a vida de Chiron, sempre reduzida a rótulos nos quais ele não consegue deixar de acreditar – gay, fraco, filho de crackhead, delinquente, vítima e, por fim, traficante e intimidador, exatamente como Juan. A beleza de Moonlight está na paciência com que o filme espera Chiron encontrar algo de si nesse deserto de determinismo social. Está, mais ainda, na sua convicção inabalável de que sempre houve, e ainda há, o que encontrar. Moonlight não vai tirar Chiron do gueto, transformá-lo em história de superaçãou ou sequer dar a ele um diploma do ensino médio; seu horizonte é o das coisas possíveis. Mas que, entre essas coisas, esteja a ideia de Chiron afinal descobrir quem é, já é redenção de primeira ordem.
As indicações de Moonlight: melhor filme, diretor, ator coadjuvante (Mahershala Ali), atriz coadjuvante (Naomie Harris), roteiro adaptado, fotografia, montagem e trilha sonora.
Trailer
MOONLIGHT – SOB A LUZ DO LUAR (Moonlight) Estados Unidos, 2016 Direção: Barry Jenkins Com Alex R. Hibbert, Ashton sanders, Trevante Rgodes, Mahershala Ali, Naomie Harris, Janelle Monáe, André Holland, Jharrel Jerome, Jaden Piner Distribuição: Diamond |