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“Glory” e “A Lição”: se aqui é assim, imagine na Bulgária

Uma dupla de diretores búlgaros e seu ótimo cinema da “vida como ela é”

Por Isabela Boscov 26 set 2017, 18h01
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  • Em A Lição, que está disponível aqui em DVD, uma menina reclama que teve o dinheiro do lanche roubado. Nadezhda, a professora (a espetacular Margita Gosheva), a faz revistar as mochilas de todos os colegas. Nada é encontrado. Nadezhda fica obcecada: põe todo mundo de castigo, dia após dia, à espera de que o ladrão se apresente. É mais do que o senso de honestidade que está em jogo aqui. Enquanto a câmera dos diretores Kristina Grozeva e Petar Valchanov se cola a Nadezhda nas suas intermináveis andanças, para lá e para cá, o quadro aos poucos se completa: a vida dela está a um passo do caos – aquele caos miúdo e aflitivo das pessoas que não têm como pagar as próximas prestações, sentem que um buraco vai se abrir sob seus pés e sabem muito bem que ninguém vai dar a mínima. Achar o aluno que roubou a aluna é uma projeção, para a professora, de como se podem corrigir todos os erros de todos os dias. O marido de Nadezhda é preguiçoso, bebe demais e bloqueou quase totalmente o portão da casa com uma van quebrada que ele diz que vai consertar, e que obviamente não serve mais para nada – e é notável a angústia que a dupla de diretores búlgaros tira desse pequeno tormento de Nadezhda, de a toda hora ter de se espremer para passar. O pai dela tem dinheiro, mas é um sujeito meio frio, que se casou de novo e que tem contas mal acertadas com a filha. Nadezhda descobre que o marido contraiu uma dívida grande (o agiota é interpretado por Stefan Denolyubov, que vai reaparecer no próximo parágrafo). Eles vão perder a casa. Como sempre, cabe a ela achar uma solução, porque quem mais vai achar?

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    A Lição
    A Lição (Abraxas Film/Divulgação)

    Em Glory, que está em cartaz nos cinemas e é o indicado da Bulgária a uma vaga no Oscar, a espiral das pequenas aflições dos diretores Grozeva e Valchanov se repete. Tzanko (o também ele espetacular Stefan Denolyubov), que há duas décadas trabalha na manutenção dos trilhos de um trecho de ferrovia a alguma distância da capital Sófia, certo dia topa com uma mala lotada de dinheiro no meio da sua ronda. Tzanko avisa a polícia, e vira objeto de curiosidade e também de ridículo: só um idiota, pensam os colegas dele, devolveria dinheiro sem dono, ainda mais sendo pobre do jeito que Tzanko é. O Ministério dos Transportes, precisando de boa publicidade, manda transformar Tzanko em herói do dia. Chama-o a Sófia para ouvir um discurso e receber um prêmio – uma droga de relógio digital, que atrasa. Antes da cerimônia (de uma rusticidade cômica), a chefe das relações-públicas do ministério, Julia (de novo a magnífica Margita Gosheva), tira do pulso de Tzanko o velho relógio marca Glory que ele ganhara do pai, décadas antes. E o põe sabe-se lá onde: Julia não está nem aí para Tzanko, que é pobre, gago e anda precisando de um banho, e portanto não está nem aí também para o relógio dele. Sempre atarefada, ambiciosa e envolvida no que mais há para fazer no ministério – controle de danos –, Julia não tem tempo nem cabeça para os outros, e foge o tempo todo das consultas médicas para engravidar. Tzanko, porém, não desiste de maneira nenhuma de procurar seu relógio. E, da mesma forma que em A Lição, tudo vai sair de controle a partir dessa premissão tão simples.

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    Glory
    Glory (Pandora/Divulgação)

    Nos bons tempos do Casseta & Planeta, eles tinham um bordão recorrente que eu adorava: “Se aqui é assim, imagina na Jamaica” (por exemplo: “Se o uísque paraguaio daqui é assim, imagina o da Jamaica”). Seja o que for que se imagine da Bulgária, uma das lanterninhas da União Europeia, Kristina Grozeva e Petar Valchanov mostram que não necessariamente é pior do que aqui. Provavelmente não é. Tem corrupção (assim como a burocracia, cultivada nas décadas em que orbitou a União Soviética). Mas tem um PIB per capita de mais de 20 mil dólares. está bem longe dos 47 mil da Dinamarca, digamos, mas é bem mais do que os 15 mil dólares do brasileiro. E, para dizer a verdade, nem em colégio particular bom daqui os alunos ganham uma aula de inglês como a da escola pública pequena e feia em que Nadezhda trabalha. Mas Grozeva e Valchanov mostram que, com certeza, algumas coisas são bem parecidas cá e lá. Especialmente essa sensação de que regras não são regras, são sugestões que ninguém leva muito a sério; a loucura burra da burocracia; a certeza de que, se a coisa apertar, não adianta gritar por socorro; e a outra certeza associada a essa, a de que os incomodados que reclamem para o bispo – se ele quiser ouvir, vai ser o único.

    Glory
    Glory (Pandora/Divulgação)

    O que torna o cinema de Grozeva e Valchanov uma beleza, porém, é que didatismo e lição de moral não são o negócio deles. Observar as coisas como são, e as pessoas como costumam ser – isso eles fazem com agudez, e com uma compaixão que, paradoxalmente, se mistura a um desencanto quase perverso. A dupla é ótima de ritmo, também, e tem outra habilidade rara: a de combinar o naturalismo dramático mais rigoroso com as marcações do suspense. Estou à espera de mais: o plano de Grozeva e Valchanov é completar uma trilogia com mais um filme tirado de pequenas notícias de jornal. Em países como estes, não há ficção que seja capaz de competir com a realidade.

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    Trailer

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    GLORY
    (Slava)
    Bulgária/Grécia, 2016
    Direção: Kristina Grozeva e Petar Valchanov
    Com Stefan Denolyubov, Margita Gosheva
    Distribuição: Pandora
    A LIÇÃO
    (Urok/The Lesson)
    Bulgária/Grécia, 2014
    Direção: Kristina Grozeva e Petar Valchanov
    Com Margita Gosheva, Ivan Barnev, Ivan Savov, Stefan Denolyubov
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