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Fernando Schüler

Por Fernando Schüler
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Sobre as regras do jogo

A democracia permite a discussão sobre muitas coisas, mas não sobre seus princípios elementares

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h17 - Publicado em 8 jul 2023, 08h00

Muita coisa foi escrita sobre o dito de Lula de que a “democracia é relativa”. Segundo alguns, o presidente teria cometido um “erro”; outros falaram em “decepção”, pois teriam assinado a “carta pela democracia” e esperavam mais de seu líder. Li também que Lula “não sabe o que é o comunismo”, pois não teria “lido Lenin”, nem estudado a história soviética. Sejamos claros, não há “erro” nenhum, nem muita novidade. Ele sabe o que se passa em países como Venezuela e Cuba. Qualquer um pode saber, aliás. Basta dar um clique em Human Rights Watch ou no relatório da ONU sobre os “crimes contra a humanidade” do regime chavista. Não há nenhuma “incoerência” ou confusão aí. São apenas escolhas políticas. Lula sempre agiu como fiador das ditaduras na América Latina, que todos sabem quais são. Ainda na outra semana, Moisés Naím denunciou a estratégia chavista para procrastinar investigações sobre tortura e execuções extrajudiciais, dizendo que Maduro tenta “lavar a cara”, e que seu maior trunfo é “Lula continuar a abraçá-lo em público”.

O presidente está no seu direito, e imagino que faça isso por convicção. Ele parece de fato acreditar que não exista um grande problema com os presos políticos de Cuba, a quem já comparou a “bandidos em São Paulo”. Quando FHC era presidente, o chanceler Lampreia foi a Cuba e se reuniu com a oposição. Deixou uma clara mensagem sobre direitos humanos. São escolhas. De onde vem a convicção de Lula? Não faço ideia. É possível que venha dos anos de formação, dos debates da esquerda nos anos 80. Assisti a alguns deles, ainda jovem. Me lembro da oposição entre a democracia como um “valor universal” ou “instrumental”, sendo essa última visão amplamente majoritária. Lembro dos líderes sandinistas e mesmo do embaixador cubano, com cara de burocrata surpreso, sendo ovacionados em congressos. Naquele universo, ainda se falava em “construir o socialismo”, numa época em que o mundo tratava da abertura e reforma do Estado, e o “socialismo real” dava seus últimos suspiros. Minha intuição é a de que Lula aprendeu alguma coisa ali. Basicamente, que aquilo era uma boa retórica para agitar a militância, como aconteceu no Foro de São Paulo.

Outra razão para essa conversa toda é que ninguém dá bola. Todo mundo já aprendeu a lidar com o “modo Macunaíma” do mundo político brasileiro, do qual Lula é uma boa síntese. Um mundo cuja regra básica é a seguinte: ajuste seu discurso de acordo com o público, sabendo que ninguém vai acreditar demais no que você está falando. Afora isso, alguém acha que exista muita gente genuinamente preocupada, por aqui, com a “tortura em Cuba e na Venezuela”? E nisso é preciso ser justo. Vale o mesmo para o “outro lado” de nossa polarização. Ou alguém acha que um líder que faz sua carreira política elogiando o regime militar brasileiro, como Bolsonaro, tem na democracia um “valor universal”? Nosso “relativismo”, sim, é democrático. Mesmo que exista quem tente se mover por princípios, mesmo contra a maré, nestes tempos difíceis.

O curioso é que esse é um debate intelectualmente resolvido, há bom tempo. Ainda me lembro das minhas leituras juvenis de Norberto Bobbio e sua insistência em explicar que são “as regras do jogo” que “distinguem os sistemas democráticos dos não democráticos”. Regras “amadurecidas durante séculos de provas e contraprovas, e consagradas em nossos sistemas constitucionais”. Vão aí a alternância de poder, a liberdade de reunião e de opinião, as garantias individuais. A democracia permite a discussão sobre muitas coisas, mas não sobre esses princípios elementares. Pode-se mudar o sistema tributário ou dar autonomia ao BC. O que não pode é impedir a oposição de disputar eleições, como fez a Venezuela, ou mandar banir ou prender os ativistas “do outro lado”. Se fizer isso, se está “relativizando”. Mexendo o nervo central da democracia, e aí temos um problema.

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A democracia vive dois grandes desafios. Um deles foi bem diagnosticado por Larry Diamond: “Talvez, pela primeira vez, nossas democracias tenham um adversário efetivamente competitivo: a China”. Adversário que joga no campo do inimigo, na economia de mercado, e vem se saindo muito bem. Diferentemente de autocracias como a Rússia, a China dispõe de um modelo a ser exportado. Modelo fundado exatamente sobre a tese da “relativização”. A ideia de que não há propriamente uma ditadura por lá, mas um “tipo diferente de democracia”, como diz Diamond, capaz de produzir crescimento acelerado dispensando os “tediosos padrões ocidentais de freios e contrapesos ao poder”. Foi a tese do embaixador chinês, em um estranho artigo, acusando a conversa sobre valores universais de “neocolonialismo”. Dizendo que “os países têm culturas e sistemas sociais diferentes, e que não existe uma única forma de praticar a democracia”. Se na minha cultura a democracia significa ter só um partido, ou ir discretamente banindo a oposição, tudo bem. É nossa cultura, não é mesmo?

“A democracia não permite discussões sobre princípios elementares”

O segundo desafio vem de dentro do próprio sistema, e é dado pela revolução tecnológica. Quando observo os milhões de pessoas que ingressaram na discussão, com as redes e a internet, e leio sobre as guerras culturais, com sua cacofonia de temas morais e estéticos assaltando o debate, me lembro de uma lição quase esquecida de Rousseau. Uma “verdadeira democracia”, dizia ele, era muito difícil, porque exigia, entre outras coisas, uma “grande simplicidade de costumes, que impeça a multiplicação de problemas e discussões espinhosas”. Dois séculos e meio depois, as coisas andaram na direção contrária. Ainda por estes dias lia sobre como a mudança de uma frase no hino do Rio Grande do Sul, vista como preconceituosa (não entro no mérito), mobilizando os debates no Parlamento. O mundo não só multiplicou as “discussões espinhosas”, como o ódio barato e a irrelevância contaminaram o mundo. E teremos de aprender a lidar com isso.

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Na última reunião do Mercosul, o presidente do Uruguai, Lacalle Pou, pediu que o bloco repudiasse o regime chavista e seu expurgo de María Corina Machado. Disse que é assim que os países devem agir, pois se trata de princípios com os quais não se deve brincar. Alguém dirá que Lacalle Pou é um líder de “direita”, mas isso é apenas conversa fiada. Gabriel Boric, o jovem presidente chileno, de esquerda, fez o mesmo quando contestou Lula ao dizer que o autoritarismo na Venezuela “não é uma narrativa”, e sim uma “realidade que vi na dor de milhares de venezuelanos”. A verdade é que é possível ter líderes que se movam para além do pragmatismo e prezem pelas “regras do jogo”. O problema talvez esteja em nós mesmos. Em nossa capacidade de renovar e escolher líderes melhores. E quem sabe de dizer a qualquer um, de esquerda ou direita, que apareça “relativizando” valores essenciais da democracia, o que disse o antigo rei da Espanha, naquele raro momento de inspiração: por que não te calas?

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849

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