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A revolução silenciosa

Há um padrão: o ‘Estado faz-tudo’ não faz quase nada direito

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 19 nov 2022, 08h00

Em Nova Orleans foi o furacão Katrina. A cidade foi arrasada, em 2005, e transformou a tragédia em uma chance de mudança. As escolas públicas tradicionais, dominadas pelos sindicatos e com péssimos resultados, foram substituídas por escolas geridas por organizações privadas, as chamadas “Charter Schools”, que em poucos anos revolucionaram a educação da capital do jazz americano. Logo antes da pandemia, os alunos das escolas Charter apresentavam um custo per capita um terço menor que o de seus pares do sistema tradicional e uma performance melhor nos testes do National Assessment of Educational Progress (Naep). Os resultados mostram uma “vantagem de 52% em matemática, no custo-efetividade do novo modelo de escola”, diz o pesquisador Patrick Wolf, da Universidade do Arkansas.

Agora mesmo em São Paulo temos um exemplo nessa direção. É bem no centro da cidade, próximo à antiga região da Cracolândia. Ali funciona o Liceu Sagrado Coração de Jesus. A escola chegou a ter perto de 3 000 alunos no passado, mas quebrou, vencida pela degradação do espaço urbano. Foi aí que a prefeitura de São Paulo resolveu propor um novo modelo: a escola reabre, podendo continuar com os alunos matriculados, mas recebe também os alunos da rede pública, a partir de um contrato com o governo. A estrutura está lá, os salesianos têm a expertise educacional, há demanda e recursos para fazer a parceria. E com um benefício a mais: permitir que alunos de diferentes perfis socioeconômicos estudem na mesma instituição, abrindo uma brecha em nosso apartheid educacional. “Quem estiver interessado na conectividade econômica deverá focar na interação entre pessoas com rendas diferentes”, diz o professor Johan­nes Stroebel, da Universidade de Nova York. Se continuarmos do jeito que estamos segregando praticamente todas as crianças de menor renda nas redes estatais, enquanto os mais ricos se concentram nas escolas privadas, não iremos muito longe. Não se trata de uma equação fácil. Há a barreira corporativa, a retórica ideológica e aquele que é o maior obstáculo para qualquer reforma no Brasil: a lei da inércia. Enquanto as minorias organizadas fazem barulho, a maioria silenciosa, como são os pais de alunos de menor renda, não tem força política, e por isso tende a perder o jogo. O detalhe é que eles representam 85% dos estudantes brasileiros. E se eles perdem, perdemos todos nós.

O caso do Liceu exemplifica o que gosto de chamar de “revolução silenciosa” que vem ocorrendo no setor público brasileiro. Ela é dada por uma divisão de tarefas: os governos se especializam nas funções de inteligência e regulação, enquanto o setor privado faz o que sabe fazer: gerenciar a produção de bens e serviços. A saúde pública é um bom campo de observação desse fenômeno. Ainda na outra semana saiu o ranking dos melhores hospitais públicos do país. Foram considerados apenas hospitais que atendem 100% pelo SUS e premiadas instituições de onze estados brasileiros. Praticamente todos os quarenta melhores hospitais classificados são gerenciados via organizações sociais ou outras formas de parceria com o setor privado, como o Hospital do Subúrbio, em Salvador, administrado na forma de PPP. Isto é, um hospital lucrativo e voltado ao atendimento público pelo SUS.

“Há um padrão: o ‘Estado faz-tudo’ não faz quase nada direito”

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Houve um tempo em que os governos faziam tudo. No Brasil, íamos da Embraer à Cobal, produzindo aviões e administrando supermercados. Agora as coisas andam mudando. Por estes dias, li que o governo acaba de anunciar mais um grande lote de concessões de parques nacionais. Alguns do mais bem-sucedidos do país, como o Parque Nacional do Iguaçu, já são de gestão privada há um bom tempo. As áreas de infraestrutura andaram à frente. Vinte e uma das 23 melhores rodovias do país, segundo pesquisa da CNT, são geridas pela iniciativa privada através de concessões. Setenta e oito por cento das vias sob gestão privada foram classificadas como “ótimas ou boas”, contra apenas 15,5% das vias sob gestão dos governos. É bom ter os dados, mas nem precisava muita pesquisa para saber disso. É só viajar um pouco por aí. A mesmíssima coisa vem acontecendo na área de serviços. A cultura é um ótimo exemplo. O Museu do Amanhã, no centro histórico do Rio de Janeiro, eleito o melhor museu da América Latina, é gerido por uma organização social, o mesmo ocorrendo com todos os museus ligados ao estado de São Paulo na lista dos melhores do mundo, que incluem a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Museu do Futebol. Para quem tiver dúvidas sobre como funciona o modelo, gosto sempre de recomendar uma ida a um concerto da Osesp, na Sala São Paulo. Vale pelo deleite musical, mas também pela aula sobre como uma política pública pode funcionar. Devagar vamos abandonando a velha confusão entre o “público” e o “estatal”, que pautou a vida brasileira desde ao menos o Estado Novo. O padrão do “Estado faz-tudo”. Gestão de escolas, presídios e centros esportivos. E quase nada direito.

Há um sentido civilizatório nisso tudo, que é dado pela seguinte pergunta: por que os cidadãos mais pobres não podem ter acesso a serviços de qualidade similar ao que têm os de maior renda? Por que os usuários do SUS não podem ter acesso a um hospital gerenciado pelo Sírio-Libanês, como é o Hospital Regional de Jundiaí, no interior de São Paulo? Por que gostamos tanto de odiar a desigualdade, na teoria, e cultivá-la, obstinadamente, na prática? Houve um tempo em que padrões mínimos de igualdade foram obtidos pela universalização do acesso a serviços públicos, via Estado, nos velhos modelos do welfare state. Com o tempo, isso se perdeu. A burocracia pública se tornou obsoleta, houve o que Niall Ferguson bem descreve como a “captura pelos produtores”, e surge a demanda por um novo modelo, focado não apenas no acesso aos serviços, mas na excelência. Em que a pauta seja a diversidade, não a padronização; e o direito dos cidadãos envolva a escolha, não a imposição.

Tempos atrás fui a Florianópolis para uma palestra e me surpreendi com a qualidade do aeroporto da capital catarinense. Ele havia sido concedido, e uma empresa suíça estava encarregada da gestão. Me dei conta como finalmente, depois de algumas décadas perdidas com discussões inúteis, havíamos descoberto que os governos não sabiam gerenciar aeroportos, e que isso não era mais aceitável em um mundo globalizado. À noite, na palestra, me perguntaram sobre quando iríamos mudar nossa educação. A resposta me veio na hora: quando nossa elite, em especial, resolver dar a nossas escolas a mesma importância que vem dando aos aeroportos nos últimos anos. Não acho provável que isso aconteça, mas a lição está dada. É só pararmos um pouco para pensar.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816

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