A rainha da pá virada
D. Carlota Joaquina, mulher de D. João VI, continua mal-afamada, mas alguns historiadores minimizam suas estripulias
Os brasileiros acreditam que D. Carlota Joaquina Teresa Cayetana de Bourbon, mulher de D. João VI, rei de Portugal, do nosso país e do Algarve, não os queria bem. Estão certos. Filha mais velha de Carlos IV, rei da Espanha, nascida em 1770 no Palácio Real de Aranjuez, ao sul de Madri, e falecida em 1830 no Palácio Nacional de Queluz, perto de Lisboa, ela veio para o Brasil com o marido e a corte lusitana. Fugiram das tropas de Napoleão Bonaparte que invadiam Portugal.
Carlota Joaquina desembarcou no Rio de Janeiro em 1808 e passou a viver no Palacete da Enseada de Botafogo, enquanto D. João morava no Palácio da Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, pois o casal já estava separado de fato. Voltou para Portugal em 1821, após uma permanência de treze anos no Brasil, do qual jamais sentiu saudade.
Ela detestava o clima carioca, a cidade, a gente e, por tabela, todo o Brasil. Enquanto esteve aqui, seguiu conspirando contra o marido, tentou destroná-lo e atormentou seus sucessivos gabinetes. Com a abdicação do pai, Carlos IV, ambicionou tornar-se regente do trono espanhol, e quem sabe soberana das colônias que sua pátria controlava na América. Queria ser coroada “rainha do rio da Prata”.
Segundo João Felício dos Santos, no livro “Carlota Joaquina – a Rainha Devassa” (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968) odiava tanto o nosso país que, ao retornar para Portugal, “atirou as sandálias ao mar para não conspurcar a metrópole com o pó da terra dos monos (macacos) e dos negros”. Coloque-se racismo nisso!
Casou aos 10 anos de idade com D. João, então príncipe regente de Portugal – o marido tinha dezoito. Conforme os mexericos da época, evocados por Felício dos Santos, traiu-o incontáveis vezes, desde muito nova, pois era “de uma infidelidade só comparável à própria fecundidade”.
O casal teve nove filhos, um dos quais D. Pedro I, imperador do Brasil e depois rei de Portugal; e D. Miguel I, que também foi soberano lusitano e era o favorito da mãe. O ódio crescente entre ela e o marido, porém, levantou a suspeita do povo. Os filhos nascidos após 1801, quando já não se entendiam em nada, seriam só de D. Carlota Joaquina, com diferentes parceiros.
O casamento com D. João só foi consumado cinco anos depois da cerimônia oficial, em clima de luta livre do gênero vale-tudo. No primeiro tempo do jogo na alcova, ela quase arrancou com uma dentada o lóbulo da orelha direita do marido. O que aconteceu no segundo tempo, Felício dos Santos conta assim:
”E, a se dar crédito a seu maldizente cronista e contemporâneo, o Pe. Lagosta – José Agostinho de Macedo –, apenas serenados os ânimos, já pela madrugada, voltou o cirurgião-mor a ser solicitado com urgência à camarinha (quarto) real, por uma açafata (dama a serviço de princesa ou rainha) apavorada, para coser funda brecha aberta na cabeça do cordato D. João, não obstante apaixonado pela temperamental esposa que, dessa vez, arremessou-lhe um pesado castiçal de prata”.
Não se tratava de mulher atraente, antes pelo contrário. Além do temperamento independente e da personalidade autoritária, era queixuda, de olhos pequenos, nariz vermelho, dentes péssimos, pele grossa, pouco asseada e dotada de “atributos masculinos”, como se dizia: voz grossa e pernas viris, muitos pelos no rosto e nos braços. Em compensação, mostrava-se inteligente e instruída, se comparada às mulheres da época. Aprendeu em Portugal a falar línguas, a gostar de matemática, navegação e equitação.
Nos últimos anos, saíram obras que minimizam a péssima fama da mulher de D. João e recolocam seu papel na vida do Brasil e de Portugal entre os séculos XVIII e XIX. A historiadora brasileira Francisca Nogueira de Azevedo, em “Carlota Joaquina na Corte do Brasil” (Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003), considera-a uma hábil negociadora política, uma importante figura feminina, que ousou transgredir as normas sociais de seu tempo e enfrentar o mundo dos homens.
O historiador argentino Marsilio Cassotti, no livro “Carlota Joaquina – a Amante do Poder” (Planeta Brasil, São Paulo, 2017), acha difícil provar com documentos que teve amantes. O falatório sobre a mulher de D. João teria começado a circular depois que ela tramou um golpe contra o marido, como uma espécie de represália ao seu comportamento.
Até hoje, entretanto, paira sobre a cabeça de D. Carlota Joaquina a suspeita de ter sido a mandante do assassinato, em 1820, de Gertrudes Angélica Pedra Carneiro Leão, mulher do juiz dos contratos reais do dízimo. Ela foi morta com um tiro na porta de casa, no bairro do Catete, Rio de Janeiro. Apurada a responsabilidade, chegou-se à embaraçosa conclusão de que D. Carlota Joaquina, suposta amante do juiz, teria sido a mandante do crime e o processo ficou por isso mesmo.
Nossa turbulenta princesa e depois rainha consorte era pródiga à mesa, embora não fosse incorrigível comilona, como o marido. Reunindo-se informações esparsas, sabe-se que no Palacete da Enseada de Botafogo iam à mesa no jantar doze pratos: sopa ou canja e cozido, arroz, refogados, palmito na manteiga, algum peixe, carnes em geral, guisado, massa e também fruta, pão, queijo, doce etc. Certas receitas denotavam a influência de Lucas Rigaud, o chef francês que trabalhou para D. Maria I, sogra de D. Carlota Joaquina, e publicou em 1785 o livro “Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha”.
Evidentemente, o cardápio devia incluir um galináceo, veneranda predileção dos Bragança, a família reinante. Ainda seriam preparadas, pelos portugueses instalados com D. João VI no Rio de Janeiro, velhas receitas lusitanas, como a galinha mourisca (feita na panela, com ovos escalfados), a galinha à cabidela (com o sangue da ave) e a galinha albardada (passada em ovos e frita). D. João, no Palácio da Quinta da Boa Vista, enfrentava uma mesa igualmente generosa.
Dona Carlota Joaquina só não era muito chegada às comidas salgadas, além de apreciar as mercearias finas (amêndoas, damasco, figo seco, chocolate, compotas) e de beber elevado volume de cachaça misturada com frutas e provavelmente açucarada – também usava a aguardente de cana-de-açúcar para conservar alimentos. O paladar da rainha tendia para o doce, a ponto de adorar goiabada.
Uma das contribuições da corte portuguesa à gastronomia carioca, para a qual D. Carlota Joaquina provavelmente contribuiu, foi a reorganização dos horários das refeições. Antes, era uma bagunça. O almoço voltou a ser de manhã, às 9 horas, o jantar às 14 horas e a ceia às 19 horas. Em um ponto todos os brasileiros concordam. A mulher de D. João VI sempre contribuiu para um elenco interminável de histórias.
GALINHA MOURISCA
RENDE 6 PORÇÕES
INGREDIENTES
.1 galinha com cerca de 2kg
.100g de toucinho em cubos
.100g de manteiga
.2 cebolas em rodelas
.1 cálice de vinho branco
.75ml de suco de limão
.6 ovos escalfados (abertos e cozidos em água bem quente)
.6 fatias de pão rústico
.Hortelã, salsinha e coentro picados, a gosto, para salpicar
.Sal e pimenta-do-reino moída na hora, a gosto, para polvilhar
.Cebolinha verde picada para salpicar
.1 pitada de canela para polvilhar (opcional)
PREPARO
1. Limpe e corte a galinha pelas juntas.
2.Em uma panela, aqueça o toucinho com a manteiga e a cebola. Incorpore os pedaços de galinha, a hortelã, a salsinha e o coentro.
3.Deixe a galinha dourar, com a panela destampada, mexendo seguidamente. Adicione o vinho branco e, assim que evaporar, coloque água para o cozimento, suco de limão, sal e pimenta.
4.Tampe a panela e deixe no fogo até a carne ficar macia.
5.Separadamente, abra os ovos na água bem quente e retire-os com uma escumadeira, após três minutos e meio.
6.Disponha as fatias de pão em pratos fundos e, por cima, coloque os pedaços de galinha com um pouco do molho que ficou na panela.
7.Cubra com os ovos e polvilhe com cebolinha verde e uma pitada de canela em pó. Sirva quente.